Os eleitores do Morro da Cruz
Comício no Moro da Cruz, o jornalista
Paulo Sant´Ana iria discursar para tentar carrear votos para sua reeleição à
vereança da cidade. Alguém conseguiu um engradado de cerveja, Sant´Ana subiu
nele e, olhando para a multidão sedenta de suas palavras confortadoras, iniciou
assim:
‒ Povo do Morro da Cruz, meus
queridos eleitores!
Fazendo um gesto teatral, continuou:
‒ Vocês têm água encanada?
E o povo respondeu em uníssono:
‒ Não!!!
‒ Vocês têm esgoto em suas casas?
‒ Não!!!
‒ Vocês têm posto de saúde?
‒ Não!!!
‒ Vocês têm luz nas suas casas?
‒ Não!!!
Então, Sant´Ana abriu os braços
lembrando a figura de Cristo crucificado, pendeu a cabeça para um lado e
disparou a última pergunta:
‒ Afinal, o
que estão esperando que não se mudam daqui?...
Dona Zilá e sua pinacoteca
Zilá era proprietária de uma pensão
de mulheres na Rua Gonçalves Dias, no Bairro Menino Deus.
Existem pessoas que bebem e ficam
alegres, expansivas. Outras entram em depressão ou mostram o lado perverso de
sua personalidade, ficando rudes e violentas. O álcool cria um vasto espectro
de comportamentos.
Contudo Zilá tinha uma característica
singular. Enquanto estava fazendo negócio em sua pensão, mostrava uma incrível
seriedade. Depois da uma manhã, dava por encerrada suas atividades de cafetina.
Então, sentava-se numa mesa e o
garçom, automaticamente, colocava sobre a mesa a garrafa de seu uísque predileto.
Em questão de uns quarenta minutos a garrafa já estava pela metade. Era nesse
momento que dela se apoderava um brutal senso estético, embora ela mesma não
soubesse o que era isso.
Era sistemática a sua conduta. Ficava
bêbada e chamava sempre o Dudu* para acompanhá-la e dar opinião sobre seus
quadros, na verdade, gravuras de um mau gosto atroz.
Uma delas mostrava um beduíno
acompanhado de duas mulheres vestidas com véus. Essa gravura era a sua preferida.
Ao lado de Dudu, ela iniciava uma análise sobre as cores que o pintor havia
usado. Depois, passava a analisar as figuras. Era sempre a mesma coisa, sempre
as mesmas perguntas:
‒ Dudu, você não acha que esse
beduíno está demonstrando uma certa tristeza? Olha a expressão de seus olhos e
maneira que está segurando o cálice.
Dudu, enfastiado com as mesmas
perguntas, havia quase um ano, resolveu gozar com a cara da cafetina.
‒ Olha, dona Zilá, cada pessoa tem
sua maneira própria de sentir. Na verdade, penso que tudo isso não passa de uma
questão de blefarite...
‒ Blefarite?
‒ Sim, blefarite, dona Zilá.
Zilá não perdeu a postura, deu mais
um longo gole no seu uísque predileto e respondeu firme:
‒ Blefarite? É, poder ser...
*****
*Dudu: Eduardo Prates da Cunha, aposentado, residia em Porto Alegre.
... E para quem não sabe, blefarite é uma inflamação de
pálpebra e não tem nada a ver com arte.
de José Rafael Rosito
Coiro)
Os anos dourados na Praça da Alfândega
Quem cruza hoje pela Praça da
Alfândega - ainda em reforma – não deve imaginar que no local onde estão as
duas pomposas sedes do Banrisul e Caixa Econômica Federal houve um boteco e
point de encontro para prostitutas que ficavam por ali nos fundos da Sete de
Setembro.
Os cinemas da redondeza aglutinavam multidões nas noites e especialmente nos finais de semana. E tinha a Matheus, sim a Confeitaria, que depois se mudou para a Borges e parou por ali. E é claro o espaço mais chique e badalado da cidade: o Clube do Comércio, onde os bailes de debutantes eram ‘o acontecimento’ e seus convites eram disputados a tapa.
Isto e muito mais você vai encontrar no livreto ‘Os anos dourados na Praça da Alfândega’, editado em 1994, pela Artes e Ofícios, de autoria de José Rafael Rosito Coiro. Já falecido, sabia escrever como poucos. Foi um grande professor de Biologia no Julinho e contribuiu enormemente para a área acadêmica da UFRGS, escrevendo artigos e contos de ficção científica.
Se você sabe pouco sobre os anos
50, 60 e 70 em Porto
Alegre e quer entender a época, os costumes, os valores, a
leitura é obrigatória. A publicação conta histórias de figurinhas carimbadas da
vida noturna da cidade. As histórias de personagens conhecidos no Brasil
inteiro misturam-se com figuras anônimas que frequentaram o ambiente da Praça,
revelando o rico cotidiano de uma cidade que se esforça para não esquecer seu
passado.
O preconceito era brutal contra "gaúcho", especialmente aquele que vinha com sotaque de interior e vestia traje tradicional. Hoje o que aplaudimos, naquela época era motivo de chistes e agressões. Coitada das "bicha" como eram chamados os homossexuais de então. Alguns furaram bloqueios e se juntaram a turma de boas vidas, de boêmios, de provocadores ingênuos (às vezes nem tanto) do Coiro ali na frente do Clube do Comércio. O China Gorda é um bom exemplo, conhecido também pelos seus dotes culinários.
E quem não conheceu ou não ouviu falar da grande jornalista e dama avant guarde Gilda Marinho, que morava no Edifício do Clube do Comércio. Há um relato marcante de como ela dobrou a conservadora sociedade gaúcha. Era de uma genialidade ímpar e sabia curtir a vida como ninguém. Dizem que o galante prefeito Loureiro da Silva ‒ não está no livro ‒ tinha uma paixão por ela.
Mas quero voltar ao grosso do
conteúdo destes anos dourados, de como era a vida dos adolescentes, a sua
iniciação sexual, a relação com os cabarés ‒ frequentados, muitas vezes, apenas
para dançar e beber. Como era penoso para as moças de então que tinham que
conservar a virgindade para casar e não serem mal faladas.
Tem relatos incríveis sobre os
metidos da época, os endinheirados e esnobes, cujas famílias não souberam fazer
os filhos pensar e trabalhar (e às vezes, estudar), caindo na decadência
financeira. Os idosos há muitos anos são os donos desta Praça, e reforço não é
ruim. Mas perdemos muitas personagens fantásticas e esquisitas, sobrou muito
corre-corre, vendedores ilegais, sujeira e árvores mal cuidadas.
Com este relato rendo minha
homenagem ao autor e aos que povoaram a Praça, sonharam e viveram esta Porto
Alegre, que merece ser resgatada, para podermos fazê-la melhor.
(Do Blog do Vereador
Adeli Sell)
Nenhum comentário:
Postar um comentário