quinta-feira, 9 de março de 2017

Mais Pensamentos de Millôr Fernandes


10 Apotegmas* do vil metal


   I   – Quem deve é mais do que pobre.

 II   ‒ Quem come fiado só defeca juros.

III   – Quem não tem eira nem beira nem sequer pode ir à feira.

IV   – Anda sempre tesa a dona que não junta renda e despesa.

 V   – Nem tudo que embaça é prata.

VI   – Ao emprestar soma bem o tempo, o peso e medida. E só empresta a quem tem.

VII  – Quem deve a João e empresta a Tomás sempre deve mais.

VIII – Boi de muitos donos anda sempre magro.

  IX  – Só o tenho em boa conta porque no fim paga a conta.

    X – Asno como muito dinheiro é um senhor garanhão.

*Apotegma: sentença moral breve e conceituosa; aforismo, máxima.

O Corrupto


→ O corrupto é um animal extremamente parecido com um não-corrupto, espécie quase extinta justamente porque é muito mais fácil de pegar.

→ O corrupto serve principalmente como assunto de conversa. Quando se está num papo e alguém fala em corrupto, é inútil tentar mudar de assunto. Pode-se, no máximo, mudar de corrupto.

→ Uma característica estranha do corrupto se observa em restaurantes. O corrupto está sempre em outras mesas.

→ O corrupto tem sempre um belo aspecto, é extremamente simpático e totalmente realizado. Ele jamais quereria ser um não-corrupto. Já o não-corrupto está sempre lamentado não ter nascido corrupto.

→ Os corruptos habitam inúmeras partes do mundo, quase todas no Brasil.

→ Detalhe importante de mutação da espécie: o corrupto moderno tem horror a colarinho-branco.

Ser Político


(Para os que se iniciam. Ou mesmo pros que estão acabando.)

Ser político é engolir sapo e não ter indigestão, respirar o ar do executivo e não sentir a execução, é acreditar no diálogo em que o poder fala e ele escuta, é ser ao mesmo tempo um imã e um calidoscópio de boatos, é aprender a sofrer humilhações todos os dias, em pequenas doses, até ficar completamente imune à ofensa global, é esvaziar a tragédia atual com uma demagogia repetida de tragédia antiga, é ver o que não existe e olhar, sem ver, a miséria existente, é não ter religião e por isso mesmo cortejar a todas, é, no meio da mais degradante desonra, encontrar sempre uma saída honrosa, é nunca pisar nos amigos sem pedir desculpas, é correr logo pra bilheteria quando alguém grita que o circo pega fogo, é rir do sem-graça encontrando antiespírito o supremo deleite desde que seu portador seja bem alto, é flexionar a espinha, a vocação e a alma em longas prostrações ante o poder como preparação do dia de exercê-lo, é recompor com estoicismo indignidades passadas projetando pra história uma biografia no mínimo improvável, é almoçar quatro vezes e jantar umas seis pra resolver definitivamente o problema da nossa subnutrição endêmica, é tentar nobremente a redistribuição dos bens sociais, começando, é natural, por acumulá-los, pois não se pode distribuir o pão disperso, e é ser probo seguindo autocritério.

E assim, por conhecer profundamente a causa pública e a natureza humana, estar sempre pronto a usufruir diariamente o gozo de pequenas provações e a sofrer na própria pele insuportáveis vantagens.

A Liberdade

(10 reparos fundamentais)


01. Tocha nova capaz de iluminar um poucos mais longe.

02. Restauração dos espigões que perderam as pontas.

03. Novas entradas.

04. Plataformas novas (belvederes) que permitam visão menos restrita.

05. Ombros reforçados (mais largos).

06. Conserto dos buracos do nariz, quebrados.

07. Conserto do olho esquerdo, vazado.

08. Escadas novas facilitando o acesso.

09. Substituição das 1.825 barras de armação que sustentam a estrutura de cobre, ligando-a ao esqueleto interno de ferro, incluindo também 12 mil arrebites fundamentais à segurança do todo.

10. Limpeza geral: banho de água e sabão por fora, jatos de bicarbonato de sódio no interior.

O leitor decida: isso é um resumo que eu fiz dos pontos principais da obra de restauração do monumento-símbolo americano ou uma proposta minha, original, simbólica, para a restauração, que muitos acreditam impossível, de nossa própria liberdade, tão deteriorada?

Decálogo para psicanalistas distraídos


I     – O Ego é o castelo do homem.

II    – O Ego tem razões que nenhum analista compreende.

III   – O psicanalista não pode ser um AlterEgo.

IV  – O Ego é uma máquina de enrustir. Ficar mexendo nele com a varinha da irresponsabilidade psicanalítica, a fim de trazer a tona o lodo que deveria ficar sempre no fundo (lei hidráulica), é um crime irreparável.

V    – O Ego não é vendável, consumível, domesticável e, sobretudo, não é cobrável.

VI   – O  Ego do paciente jamais poderá ter relações com o ID do psicanalista.

VII  – O Ego do vizinho é sempre maior do que o nosso.

VIII – O Ego é intransferível no todo ou na parte.

IX    – O Ego é inviolável. Qualquer psicanalista pode ser processado por estupro psicológico.

X     – Ego sum qui sum. É isso ai.



(Do livro “Diário da Nova República Vol.2”, de Millôr Fernandes)


Millôr por Fraga - ZH



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