sexta-feira, 24 de março de 2017

O pandeiro salvo-conduto*



A caminho da Festa da Penha, João da Baiana se viu abordado por um policial de maus bofes. O código penal em vigor, datado 1890, trazia um capítulo inteiro, com seis detalhados artigos, destinados a coibir o chamado “crime de vadiagem”. Segundo a letra da lei, seria declarado vadio todo aquele sem “profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida”. A nova legislação entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros, recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional e, por isso, estavam à margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada com indício de vagabundagem. Como provou possuir emprego fixo, João da Baiana não foi recolhido à delegacia. Mas, para seu desconsolo, teve apreendido o pandeiro de estimação.

Por causa disso, decidiu não acompanhar os amigos em um convescote programado para aqueles dias em Laranjeiras, na mansão do senador Pinheiro Machado. Sem seu pandeiro, não seria ninguém, imaginou João. Nada teria a fazer por lá. Na data acertada, desapareceu. Fez imensa falta, pois, tão logo soube do motivo da ausência, o líder do Partido Republicano Conservador mandou-lhe um recado. Corresse no dia seguinte ao seu gabinete, na sede do Senado, o Solar do Conde dos Arcos. O músico atendeu ao chamado e foi recebido em pleno horário de expediente parlamentar, quando o senador lhe indagou sobre onde poderia mandar encomendar um novo pandeiro para lhe dar de presente.

João da Baiana, radiante, indicou a loja Ao Cavaquinho de Ouro, especializada em instrumentos musicais. O estabelecimento funcionava na rua da Carioca, mas com o Bota-abaixo e a obras de alargamento da via tinha sido transferido para a rua da Alfândega. Diante da informação, o senador rabiscou um bilhete para João da Baiana o entregar no balcão da loja, orientando o vendedor a gravar a mensagem no corpo do melhor pandeiro à venda: “A minha admiração, João da Baiana – Senador Pinheiro Machado”.

Depois desse dia, nenhum meganha se atreveu a confiscar de novo o pandeiro do filho de Tia Perciliana. “Ainda tenho o pandeiro em casa, mas não toco mais”, diria João da Baiana em entrevista, decorridos cerca de setenta anos do episódio. O instrumento, a essa altura, estava com couro gasto, o aro de madeira remendado com esparadrapo e as platinelas oxidadas.

“É uma relíquia, um troféu”, vangloriava-se. O pandeiro de João da Baiana, oferecido por Pinheiro Machado e transformado em uma espécie de salvo-conduto, expressava toda a complexidade da convivência entre as elites sociais e os músicos populares.

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*Salvo-conduto é um documento emitido por autoridades de um Estado que permite a seu portador transitar por um determinado território. O trânsito pode ocorrer de forma livre ou sob escolta policial ou militar.

(Do livro “Uma História do Samba – as origens”, de Lira Neto)

Os personagens:


João da Baiana com o pandeiro do senador


Senador gaúcho Pinheiro Machado


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