A caminho da Festa da Penha, João da Baiana se viu abordado por um
policial de maus bofes. O código penal em vigor, datado 1890, trazia um
capítulo inteiro, com seis detalhados artigos, destinados a coibir o chamado “crime
de vadiagem”. Segundo a letra da lei, seria declarado vadio todo aquele sem
“profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida”. A nova legislação
entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros,
recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional
e, por isso, estavam à margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da
Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da
cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de
quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser
interpretada com indício de vagabundagem. Como provou possuir emprego fixo,
João da Baiana não foi recolhido à delegacia. Mas, para seu desconsolo, teve
apreendido o pandeiro de estimação.
Por causa disso, decidiu não
acompanhar os amigos em um convescote programado para aqueles dias em
Laranjeiras, na mansão do senador Pinheiro Machado. Sem seu pandeiro, não seria
ninguém, imaginou João. Nada teria a fazer por lá. Na data acertada,
desapareceu. Fez imensa falta, pois, tão logo soube do motivo da ausência, o
líder do Partido Republicano Conservador mandou-lhe um recado. Corresse no dia
seguinte ao seu gabinete, na sede do Senado, o Solar do Conde dos Arcos. O
músico atendeu ao chamado e foi recebido em pleno horário de expediente
parlamentar, quando o senador lhe indagou sobre onde poderia mandar encomendar
um novo pandeiro para lhe dar de presente.
João da Baiana, radiante, indicou a
loja Ao Cavaquinho de Ouro, especializada em instrumentos musicais. O
estabelecimento funcionava na rua da Carioca, mas com o Bota-abaixo e a obras
de alargamento da via tinha sido transferido para a rua da Alfândega. Diante da
informação, o senador rabiscou um bilhete para João da Baiana o entregar no
balcão da loja, orientando o vendedor a gravar a mensagem no corpo do melhor
pandeiro à venda: “A minha admiração, João da Baiana – Senador Pinheiro
Machado”.
Depois desse dia, nenhum meganha se
atreveu a confiscar de novo o pandeiro do filho de Tia Perciliana. “Ainda tenho
o pandeiro em casa, mas não toco mais”, diria João da Baiana em entrevista,
decorridos cerca de setenta anos do episódio. O instrumento, a essa altura,
estava com couro gasto, o aro de madeira remendado com esparadrapo e as
platinelas oxidadas.
“É uma relíquia, um troféu”,
vangloriava-se. O pandeiro de João da Baiana, oferecido por Pinheiro Machado e
transformado em uma espécie de salvo-conduto, expressava toda a complexidade da
convivência entre as elites sociais e os músicos populares.
*****
*Salvo-conduto é um documento emitido por autoridades
de um Estado
que permite a seu portador transitar por um determinado território. O trânsito
pode ocorrer de forma livre ou sob escolta
policial ou militar.
(Do livro “Uma
História do Samba – as origens”, de Lira Neto)
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