terça-feira, 29 de agosto de 2023

Dois estudantes na Legalidade

 Alcy Cheuiche*

O trem dá um solavanco, apita e vai avançando com cautela. Paulo e eu abanamos para umas moças da plataforma. E tratamos de procurar lugar, porque a viagem é longa. Porto Alegre a Uruguaiana sempre foi uma lonjura. Mas, neste começo de setembro de 1961, a viagem começa de noite e não dura menos de 24 horas. Algumas a menos para mim, que vou descer em Alegrete. 

Acostumando o corpo com o balanço do trem, vamos avançando pelos vagões lotados. Do lado de fora, a velha Voluntários da Pátria. Do lado de dentro, passageiros sobrando por todos os lados. Lugar em banco, nem sonhando. Todos os cantos atulhados de malas, cestas, gente em pé. Choradeira de crianças. Uma parada brusca atira todos para frente. O que foi? Não foi nada. É a estação de Diretor Pestana, perto do aeroporto. 

Sem bagagem, aproveitamos para descer e ir olhando pelas janelas. Mais gente entrando no trem. Subimos no carro-restaurante e, milagre dos milagres, achamos uma mesa desocupada. 

Uma Brahma e dois sanduíches de mortadela. 

E ficamos por ali. Falando e pensando nos dez últimos dias com o Brizola no Piratini. Dez dias sonhando em levar o Presidente João Goulart até Brasília. Todos, estudantes e operários, principalmente, com revólver na cintura. Nomes registrados no Mata-Borrão. O III Exército firme conosco. Na Brigada, nem se fala. O que foi que faltou? 

Paulo pega o copo e dá um longo gole. Eu seguro a garrafa para não cair. 

− O que faltou? O discurso do Jango. 

− É... Acho que tu tens razão. 

E a imagem triste volta a minha mente. Desde a renúncia de Jânio Quadros, no dia 25 de agosto, Porto Alegre espera pelo João Goulart. O governador Leonel Brizola lutava pela posse do Vice-Presidente desde o primeiro dia. Com alguns poucos fiéis, idealizou a cruzada da Legalidade, que sacudiu o Brasil. Muitos de nós arriscamos a vida quando a FAB recebeu ordem para bombardear o Palácio Piratini. Utilizando a Rádio Guaíba, Brizola liderou a Cadeia da Legalidade dos porões do palácio. Depois de alguns dias de muita tensão, recebeu o apoio do General Machado Lopes e do III Exército, consolidando-se a aliança civil/militar contra o golpe. 

Todos ficamos esperando pelo Jango para levá-lo até Brasília. E as notícias foram-se acumulando. Saiu da China para Paris. Saiu de Paris para Londres. Saiu de Londres para Nova Iorque. Saiu de Nova Iorque para Buenos Aires. Saiu de Buenos Aires para Montevidéu. Saiu de Montevidéu, num tal voo cego da Varig e, finalmente, chegou em Porto Alegre. Agora sim! Como Getúlio Vargas, em 1930, ele assumirá o comando da Revolução, e o povo o colocará no poder. Machado Lopes será Ministro da Guerra. Brizola, o nosso candidato a Presidente na próxima eleição. 

Bueno, então chegou a hora do encontro do povo com o João Goulart. E era gente como formiga na Praça da Matriz. Não sei calcular multidões, mas só vi tanta gente assim, anos depois, numa greve geral, em Paris. 

Os alto-falantes anunciaram que o Presidente iria aparecer numa sacada do palácio. E se fez um silêncio enorme. Milhares de olhos fixos naquele homem vestido com um terno azul amarrotado. Jango abanou para o povo e foi uma ovação. Um delírio de aplausos. E ficamos à espera do discurso. 

− Mas ele não falou. 

− Virou às costas ao povo e sumiu-se dentro do palácio. 

São coisas que a gente não gosta de lembrar, até porque ele pagou caro por isso. O homem tão esperado não voltou mais à sacada. E o povo foi-se dispersando. Muitos falando no conchavo tramado em Montevidéu. O Tancredo Neves estava lá, esperando com sua carta na manga. Levava a proposta dos militares golpistas: Odílio Denys engoliria o Jango em troca do parlamentarismo. E o Tancredo é que governaria como Primeiro-Ministro. Nenhuma tropa poderia mover-se aqui no Sul. 

− E o Brizola? 

− Ficou fora disso tudo. E preveniu o Jango do golpe que vai vir. 

− Por isso não foi com ele na sacada. 

− É isso aí. 

Nesta hora, chega o garçom e nos faz a pergunta temida: 

− Vocês dois vão jantar? 

− Não vamos. 

− Então, paguem e desocupem a mesa. 

Pagamos de cara feia e saímos balançando à procura de lugar. Por sorte, o trem parou e saímos caminhando pelo lado de fora, sem ver nenhum banco livre, pelas janelas. Acabamos subindo ao final do último vagão. Um carro dormitório. Ninguém por perto. Decerto, todos dormindo. 

− Sabes de uma coisa, vou urinar daqui mesmo. 

− Eu também. 

Começada essa operação, não se pode parar de repente. Ms uma lanterna nos iluminou em cheio, e uma voz autoritária exigiu: 

− Parem com isso, você dois aí! 

Paulo puxou do revólver e eu o imitei de imediato. 

− Apaga essa merda! 

A luz se apagou e ouviu-se uma voz sumida: 

− Mijem no mais, companheiros. 

O trem apitou e foi saindo devagar. E nós dois rindo como loucos. Rindo como sabem rir os jovens de vinte anos. Rindo de nós mesmos, da voz assustada do guarda, da nossa Revolução da Legalidade que acabara numa palhaçada. 

Afinal, para alguma coisa serviram as nossas armas. 

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(Do jornal Correio do Povo, 26 de agosto de 2023)

Foto Correio do Povo 

*Alcy José de Vargas Cheuiche é um veterinário, professor e escritor brasileiro, autor de romances históricos, poesias, crônicas e teatro. É autor de obras como “Ana sem Terra” e “Lord Baccarat”. 

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