Luís Fernando
Veríssimo
Pela janela vê-se uma floresta
com cada macaco no seu galho. Dois ou três cuidam o rabo do vizinho, mas a
maioria cuida do seu. Há também um moinho diferente, movido por águas passadas.
Pelo mato, sem cachorro, passa Maomé a caminho da montanha. Para evitar que a
montanha venha até ele e cause um terremoto. Dentro da casa do ferreiro, este
conversa com o filho do enforcado.
– Nem só de pão vive o homem – diz o ferreiro.
– Comigo é pão, pão, queijo, queijo – diz o filho do
enforcado.
– Um sanduíche: Você está com a
faca e o queijo na mão. O pão não porque o diabo ainda não entregou. Mas cuidado.
– Por quê?
– Essa é uma faca de dois gumes.
Entra o cego gritando:
– Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Atrás do cego entra um guarda com um mentiroso seguro pelo
braço.
– Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu – anuncia o guarda.
– Eu não quero ver! – insiste o cego.
Chega um vendedor de pombas com uma
pomba na mão e duas voando à sua volta. O filho do enforcado pergunta quanto
custam as pombas.
– Esta na mão é 50 – diz o vendedor. – As duas voando eu
faço por 30 cada uma.
– Não me mostra que eu não quero ver! – grita o cego.
O cego se choca com o vendedor de
pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob o
teto de vidro da casa do ferreiro.
– Esse cego está cada vez pior! – protesta o ferreiro.
O guarda informa que vai atrás do
coxo e pede uma corda para amarrar o mentiroso. O filho do enforcado faz cara
feia à menção da corda.
O guarda sai pela porta, mas
volta em seguida dizendo para o ferreiro que um pobre quer falar com ele. Algo
sobre uma esmola muito grande.
Parece desconfiado. Sai o guarda e entra o pobre.
– Olha aqui, doutor – diz o pobre. – Essa esmola que o
senhor me deu, dá para desconfiar…
– Está bem. Devolve a esmola e pega uma pomba.
– Essa eu nem quero ver! – grita o cego.
Entra o mercador. O ferreiro dirige-se a ele.
– Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar este mentiroso com
uma...
O mercador põe a mão atrás da orelha e diz:
– Hein?
– Eu não quero ver! – grita o cego.
– O quê?
– Peguei uma pomba! – grita, exultante, o pobre.
– Não me mostra – pede o cego.
– Como? – diz o mercador.
– Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um
galeto – diz o pobre.
– Infelizmente, aqui em casa só
tem espeto de pau – informa o ferreiro. E, esquecendo-se da presença do filho
do enforcado, pergunta:
– Essa corda, vem ou não vem?
O filho do enforcado sai da casa,
furioso. Do lado de fora atira uma pedra no telhado de vidro. Duas pombas saem
voando pelo buraco do teto. Pela porta de trás, de tapa-olho, entra o último.
– Como é que você entrou aqui? – pergunta o ferreiro.
– Arrombei a porta – responde o último.
– Vou ter que arranjar uma tranca para essa porta arrombada.
De pau, claro.
– Vim avisar que já é verão ‒ diz o último. – Vi não uma,
mas duas andorinhas voando aí fora.
– Hein? – diz o mercador.
– Não era andorinha – explica o
ferreiro, cansado de tanto movimento. ‒ Eram duas pombas, e das baratas.
O pobre chama o último:
– Ei, você aí de um olho só…
Ao ouvir isso, o cego se prostra no chão. Em frente ao
mercador, por engano.
– Meu rei! – exclama o cego.
– O quê?
– Chega! – grita o ferreiro. – Todos para fora! Rua!
Todos se precipitam para a porta,
menos o cego, que vai de encontro a uma parede. O último corre atrás dos outros
protestando.
– Parem! Primeiro eu. Primeiro eu!
O cego vai atrás do último.
– Meu rei! Meu rei!
O ferreiro, finalmente sozinho, suspira aliviado. Que dia!
*****
Do livro “Crônica
Brasileira Contemporânea”,
Organização e
apresentação de Manuel da Costa Pinto
Editora Moderna
Ditados populares do texto:
01. Cada macaco no seu galho → isto é, cada um deve ficar na
sua.
02. Macaco, cuida do teu rabo e
deixa o rabo do vizinho → designa pessoas que deixam de lado a própria vida
para se preocupar com a alheia.
03. Águas passadas não movem
moinhos → serve como um ensinamento para que as pessoas consigam superar
acontecimentos do passado e possam seguir com suas vidas.
04. Estou num mato sem cachorro → isto é, estou na miséria e
sem perspectiva.
05. Se a montanha não vai a Maomé,
vai Maomé à montanha → Maomé, quando criou o islamismo, quis provar a força da
religião aos novos súditos dando ordem para que o monte Safa, na Arábia
Saudita, viesse até ele. O monte não andou. Então Maomé disse: “Alá é
misericordioso. Se Ele tivesse ouvido minhas palavras, a montanha iria cair
sobre nossas cabeças”.
06. Nem só de pão vive o homem → isto é, ele também deve
viver para se divertir.
07. Pão, pão, queijo, queijo → isto é, não complique o que é
simples.
08. Estar com a faca e o queijo
na mão → significa estar com todas as possibilidades para resolver, concluir,
fazer, determinar, etc., uma questão.
09. O pão que o diabo amassou → é
uma expressão popular que significa passar por um grande sofrimento ou por
grandes dificuldades.
10. Faca de dois gumes → situação
que pode ter um lado positivo e um lado negativo, ou vantagens e desvantagens.
11. Pior cego é o que não quer
ver → expressão usada para definir as pessoas que finge que não vê, que faz vista
grossa, para um problema que pode ser enfrentado se encarado de frente.
12. Mais depressa se pega um coxo
que um mentiroso → pois o coxo não dá pra enganar e o mentiroso engana bastante, por isso é que é mais fácil pegar o coxo.
13. Mais vale uma pomba na mão do
que duas voando → significa que vale mais uma coisa certa do que duas incertas.
14. Não se fala em corda em casa
de enforcado → significa que não se conversa com alguém sobre assunto delicado
ou que possa ofender ou mesmo magoar a pessoa.
15. Quando a esmola é demais, até
o pobre desconfia → significa que ninguém dá nada se não for em troca de um
favor...
16. Fazer ouvidos de mercador →
significa fingir que não ouve; fazer-se desentendido; não querer ouvir; não
prestar atenção; fazer orelhas moucas; não dar importância.
17. Em casa de ferreiro, espeto
de pau → é usado quando uma pessoa refere-se a alguém que é hábil para
determinada profissão, mas não usa desta habilidade em favor próprio.
18. Não atira pedra quem tem
telhado de vidro → isso quer dizer, caso você venha criticar alguém, se
sentindo no direito de repreender uma pessoa por uma atitude que esta cometeu.
Aceite o direito de resposta desta. Quem tem telhado de vidro, nunca quebra o
do próximo.
19. Não se coloca tranca depois
da porta arrombada → significa que devemos tomar cuidado antes das coisas
acontecerem, porque, depois, o mal já estará feito.
20. Uma andorinha só não faz
verão → diz-se para exemplificar que um trabalho em conjunto rende muito mais
ou que uma pessoa sozinha não faz grandes coisas.
21. Os últimos serão os primeiros
→ aqueles que querem ser sempre os primeiros, muitas das vezes acabam por fazer
tudo mal, enquanto que uma pessoa que não tem pressa, que faz as coisas com
calma, acabará ganhando com isso.
22. Em terra de cego, que tem um
olho é rei → é uma pessoa diferenciada por possuir aquilo que os demais não têm.
E bem legal essa crónica e um pouco engraçado dmp
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