Comer um homem vivo
– Coisa nunca vista! Todos ao circo!
Três dias de propaganda e o
circo, às 8 horas da noite, já não suportava mais ninguém. Nem um espectador.
Barbaçudos caipiras de cinco léguas em redor vieram, abismados, assistir ao
estranho espetáculo. Após alguns trabalhos conhecidos, reinando o maior
silêncio, surgiu o secretário.
Ao centro do picadeiro encontravam-se uma mesinha de três
pernas, bacia com água, toalha, sabão e uma cadeira.
– Respeitável público!
Soturno silêncio de espanto e curiosidade domina o ambiente.
– Vai comparecer o extraordinário Come Gente, que se
compromete a comer um homem vivo!
Todos os olhares se voltaram para
a porta da barraca, de onde apareceu o Fontes, nu da cintura para cima,
horrivelmente caracterizado, com enorme boca de orelha a orelha. Vinha em passo
lento e terrificante. O secretário retirou-se fingindo medo.
E Fontes falou numa voz de estertor:
– Pacueri! Issabubdê! Mararpatedefroagá!
Parou. Passou a olhar, de sobrecenhos carregados, no
público:
– Cá estou para comer um homem vivo!
Um arrepio de terror correu pelas espinhas dos espectadores.
– Estou a vossa disposição! Qual de vós quer ser comido
vivo?
Silêncio fúnebre... Movimentos de dúvida.
–Ninguém? Esperarei dois minutos.
O dentista do lugar, indignado
por perceber o plano, cochichou com o vigário e o barbeiro. Ele, que estivera
duas vezes em cidades grandes, ser embrulhado... Desceu da arquibancada. O
povo, horrorizado, olhou-o, pouco faltando para saltar em sua defesa.
Dirigiu-se ao primeiro caipira e disse-lhe ao ouvido:
– Não tem perigo que ele te coma. É uma esperteza do ladrão.
Dou-te cinqüenta cruzeiros. Vá!
– Por cem eu vô...
– Vá...
E o caipira, resoluto, galgou o picadeiro vermelho e gritou:
– Tô aqui!
Fontes não vacilou:
– Tire o chapéu o paletó e a camisa, para começar.
O povo vibrava, espantado, como se estivesse sonhando.
O malandro ensaboou com raiva a
cabeça, o pescoço e o peito do caboclo. Lavou-os. Esfregou-lhes a toalha com
força.
– Senhores, vou devorar este
homem vivo, conforme prometi Convém que as pessoas nervosas se retirem. Costumo
começar pelas orelhas...
O tabaréu olhou-o terrificado, fechando os olhos. A
ansiedade era geral.
Fontes, arregalando a boca enorme, pegou a orelha do matuto.
Ouviu-se estridente grito do povo:
– Não!
O Come Gente fincou o dente, com
violência, na orelha direita da vítima. O caboclo deu um berro de dor, saindo
em disparada, seminu, com o ombro manchado de sangue que lhe escorria da
ferida.
– Assim é impossível!
E o caipira, rasgando a massa do povo, gritava:
– Eu não aquerditava! Ele come mermo!
Enquanto o Fontes fugia pelos fundos, com os cobres no
bolso, garrando estrada, o caipira, no meio dos espectadores, vestindo a roupa
que lhe trouxeram, dizia trêmulo e horrorizado:
– Ele come mermo! Nem por mir conto... Ave Maria! Credo!
*****
(Cornélio Pires,
Prosa e Poesia, em
Antologia Caipira ,
Edições “O Livreiro”,
SP)
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