Somos de uma geração que viveu uma passagem, saiu de um ciclo e entrou
em outro, assim, muito rapidamente. Esteve
nos dois mundos. Nossos pais faziam tudo, inventavam, criavam, produziam porque
era necessário. Não havia supermercado na esquina. Nossos filhos compram tudo
pronto, pegam nas gavetas produtos industrializados. Está tudo lá, pronto para
comer, na geladeira. Nossos avós plantavam o que comiam, amansavam cavalos,
bois de canga, construíam seus ranchos com leivas, taquara e capim santa-fé.
Foi o colega João Luís Xavier que me alertou sobre isso, dia desses. “Mas isso
era no tempo em que se fazia dobradiça de couro e muito pai recusava genro só
por este ter a mão lisa”, brincou o João, que, como eu, nasceu nas barrancas do
rio Ibicuí. Porque o fato significava que no índio não era trabalhador, não era
um futuro marido confiável.
Era uma época com outros valores,
muito mais simples, bem menos elaborados que nos de hoje. Atualmente, qualquer
um de nós que vive na cidade não iria mais arrumar casamento, pois só lidamos
com computador. E esses, como se sabe, não fazem calos nem na ponta dos dedos. Meu
avô era um conhecido marceneiro lá para os lados de Cacequi. Especialista em
roda de carreta, dizem que também fazia excelentes carroças e carroções. Além
de cabeceiras de cama, mesas torneadas e outras artes em madeira. Seu Orcy ,
nosso vizinho na Vila Rica, era um descendente de italianos colorado e
engenhoso. Fabricava chinelas de borracha aproveitando velhos pneus, fazia seu
próprio vinho, tinha uma linda horta onde produzia todo tipo de verdura e
legumes, um pomar e, um dia, sem mais nem menos, apareceu andando numa
bicicleta de vários metais que ele mesmo projetou e construiu. Eu o admirava
muito, primeiro por ser pai do Clécio, meu melhor amigo de infância, e,
segundo, por engendrar tantas coisas interessantes.
Minha mãe era uma doceira de mão
cheia. Sabia fazer pão e ótima comida, mas suas rapadurinhas de leite, geleias,
peradas, figadas e goiabadas, só ela fazia daquele jeito. Gostava de começar
aquele trabalho bem cedo, com calma, desde o preparo das frutas, descascando
com jeito e deixando as cascas sobre o vestido, com um pote ao lado. Depois
cozinhava, moia a massa numa máquina, colocava o açúcar, outras iguarias que
eram segredo, e fervia até o ponto certo no velho tacho de bronze, que ganhou
de sua mãe e que trouxera da Serra das Encantadas, onde nasceu e se criou. Das
sacas de farinha de trigo, fazia roupa de cama e até algumas peças de roupa.
Lavava e tingia o tecido, cortava e costurava numa pequena máquina manual
durante as noites quentes de verão.
Guardo ainda até hoje uma admiração
por essas pessoas que faziam o que precisavam. Eram autossustentáveis,
ecológicos e modernos, embora alguns os chamem de antigos. Na verdade, estavam
à frente de seu tempo, mas a geração que os sucedeu não teve nem conservou essa
visão. Ficamos preguiçosos, arrogantes e quase inúteis. Muitas vezes, os
“velhos’ são motivos de chacotas ou no máximo chamados de estranhos. Minha
literatura tem um pouco desses inventivos por natureza, pois “o sapo não pula
por boniteza, mas, sim, por precisão”.
Paulo Mendes* – em
Capereada – Correio do Povo
*Paulo Mendes é autor dos livros "Campereadas - Crônicas, Contos e Causos do Sul" e "Camperadas 2 - Couro, Alma e Coração" - livos imprescindíveis para entender a alma do povo gaúcho.
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