Luís Fernando
Veríssimo
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de
culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se
entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de
outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os
apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de
confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de
jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile
infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos
fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães
reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob
ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no
terceiro Carnaval se falaram.
‒ Como é teu
nome?
‒ Janice. E o teu?
‒ Janice. E o teu?
‒ Píndaro.
‒ O quê?!
‒ Píndaro.
‒ Que nome!
‒ O quê?!
‒ Píndaro.
‒ Que nome!
Ele de
legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa)
desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem
no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no
Carnaval, a tia é que era sócia.
‒ Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar
com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na
mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola
alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo
braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se
despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu
correndo.
No baile do ano em que fizeram 13
anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina
espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam
olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
‒ Me dá
alguma coisa.
‒ O quê?
‒ Qualquer coisa.
‒ O leque.
‒ O quê?
‒ Qualquer coisa.
‒ O leque.
O leque da
bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no
baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia
nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro
pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo,
antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu.
Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o
guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua
cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
‒ Você
vomitou a alma ‒ disse a mãe. Era exatamente como se sentia. Como alguém que
vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o
cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao
baile dos adultos no clube ‒ e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos,
tudo. Uma fantasia indefinida.
‒ Sei lá.
Bávara tropical ‒ disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o
corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior
porque a avó morrera, logo no Carnaval.
‒ E aquela
bailarina espanhola?
‒ Nem me fala. E o toureiro?
‒ Aposentado.
‒ Nem me fala. E o toureiro?
‒ Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa
florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos,
amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo,
alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo
também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão
anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as
calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher
o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas
as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos
não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o
guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de
primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro,
talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de
couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo
menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a
tocar Bandeira Branca e ele se
dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão,
virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o
com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu
mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no
seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois.
Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho
do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no
Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a
reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina
espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma
coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval
seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha
sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela
não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não
teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
‒ O que você ia me dizer, no outro
Carnaval? ‒ perguntou ela.
‒ Esqueci ‒ mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois
casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o
marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a
todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz
da minha vida, Bandeira Branca, a
cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto
da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será
Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que
ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...
(Do livro “Os cem melhores
contos brasileiros do século”,
Seleção Italo
Moriconi - Objetiva)
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