(7.11.1901 –
9.11.1964)
Apresentação
Aqui está minha vida ‒ esta areia
tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz ‒ esta concha
vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor ‒ este coral
quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança ‒ este
mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
Cecília Meireles, in
“Retrato Natural”, 1949.
Madrugada na aldeia
Madrugada na aldeia nevosa,
com as glicínias escorrendo orvalho,
os figos prateados de orvalho,
as uvas multiplicadas em orvalho,
as últimas uvas miraculosas.
com as glicínias escorrendo orvalho,
os figos prateados de orvalho,
as uvas multiplicadas em orvalho,
as últimas uvas miraculosas.
O silêncio está sentado pelos
corredores,
encostado às paredes grossas,
de sentinela.
encostado às paredes grossas,
de sentinela.
E em cada quarto os cobertores peludos
envolvem o sono;
poderosos animais benfazejos, encarnados e negros.
poderosos animais benfazejos, encarnados e negros.
Antes que um sol luarento
dissolva as frias vidraças,
e o calor da cozinha perfume a casa
com a lembrança das árvores ardendo,
dissolva as frias vidraças,
e o calor da cozinha perfume a casa
com a lembrança das árvores ardendo,
a velhinha do leite de cabra
desce as pedras da rua
antiqüíssima,
e o pescador oferece aos recém acordados
os translúcidos peixes,
que ainda se movem, procurando o rio.
antiqüíssima,
e o pescador oferece aos recém acordados
os translúcidos peixes,
que ainda se movem, procurando o rio.
Cecília Meireles, in “Mar
Absoluto e Outros Poemas”.
Voo
Alheias e nossas as palavras
voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras como águias
imensas.
Como escuros morcegos, como negros abutres,
as palavras voam.
Como escuros morcegos, como negros abutres,
as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e
retas acima de nós,
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.
Cecília Meireles, in “Melhores
Poemas”.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
‒ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
se permaneço ou me desfaço,
‒ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
‒ mais nada.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
‒ mais nada.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem
força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
‒ Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Tão simples, tão certa, tão fácil:
‒ Em que espelho ficou perdida
a minha face?
→ Cecília nasceu no Rio de
Janeiro em 1901. Órfã de pai e de mãe, foi educada pela avó materna, que
exerceu forte influência sobre a sua formação. Escreveria mais tarde: “Nasci
aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha
mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram
muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina,
uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o
Efêmero e o Eterno. Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que
parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa
foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram
fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu
mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os
livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação
tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma
separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. (…)
Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os
dias. E eu perguntava: ‘Por quem você está rezando?’ ‘Por todas as pessoas que
sofrem’. Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação
espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a
vida”.
(Texto de Bula
Revista por Carlos William Leite)
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