segunda-feira, 13 de maio de 2024

A origem do Conto do Vigário

 Narrativa de um grande português

Fernando Pessoa por Isolino Vaz. 

Vivia, há já bastantes anos, algures num Concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador e negociante de gado chamado Manuel Peres Vigário. 

Chegou uma vez ao pé dele um fabricante de notas falsas e disse-lhe: «Sr. Vigário, ainda tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O Sr. quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» 

«Deixe ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» 

O outro, porém, insistiu; Vigário, regateando, cedeu um pouco. Por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma. 

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário quer pagar a dois irmãos, negociantes de gado como ele, o saldo de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em que se deveria efetuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna obscura da localidade, quando surgiu à porta, cambaleante de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de alguma conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha um pagamento a fazer-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Os irmãos disseram que não se importavam; mas, como nesse momento a carteira se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem mil réis. Houve, então, uma troca de olhares entre os dois irmãos. 

O Manuel Peres Vigário contou, tremulamente, vinte notas, que as entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem perdeu tempo em olhar para elas. O Vigário continuou a conversar, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria um recibo. Não era costume, mas nenhum dos irmãos fez questão de não dá-lo. O Manuel Peres disse que queria ditar o recibo, para que as coisas ficarem todas certas. Os irmãos anuíram a este capricho de bêbado. Então o Manuel Peres ditou como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade estúpida do bêbado), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, a quantia de um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, selado e assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e por fim foi-se embora. 

Quando, no dia seguinte, houve ocasião de se trocar a primeira nota de cem mil réis, o indivíduo, que ia a recebê-la, rejeitou-a logo por falsíssima. Rejeitou do mesmo modo a segunda e a terceira. E os dois irmãos, olhando então bem para as notas, verificaram que nem a cegos se poderiam passar. 

Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atônito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira que o havia colhido providencialmente no dia do pagamento e o havia feito exigir um recibo estúpido. 

Lá o dizia o recibo: «um conto de réis “em notas de cinquenta mil réis”». Se os dois irmãos tinham notas de cem, não eram dele, Vigário, que as tinham recebido. Ele lembrava-se bem, apesar de bêbado, de ter pago vinte notas, e os irmãos não eram (dizia o Manuel Peres) homens que lhe fossem aceitar notas de cem por notas de cinquenta, porque eram homens honrados e de bom nome em todo o Concelho. 

E, como era de justiça, o Manuel Peres Vigário foi mandado em paz. 

O caso, porém, não podia ficar secreto. Por um lado ou por outro, começou a contar-se, e espalhou-se. E a história do «conto de réis do Manuel Peres Vigário», passou a ser uma expressão corrente na língua portuguesa. 

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Fernando Pessoa, in Notícias Ilustrado, 2ª série. Lisboa: 18-8-29, e in Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. Europa-América. 


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