quinta-feira, 23 de maio de 2024

Expelidos da inundação

 Carpinejar

Sonhos empilhados nas calçadas. 

Com o gradual recuo das águas do Guaíba, moradores dos bairros Menino Deus (foto acima), Cidade Baixa e 4º Distrito esvaziaram as suas residências e colocaram as conquistas de toda uma existência no lixo. 

Sofás, mesas, cadeiras, estantes, camas, televisões, geladeiras, computadores, fogões se acumulam na frente dos endereços para o descarte, num cenário de fim de guerra. 

Salário, economias e investimentos de numerosas famílias foram reduzidos a barro. 

Depois da ocupação das águas, é como se as casas expulsassem o seu interior. As suas entranhas, as suas vísceras. Tudo é memória boiando em espaços condenados pelo cheiro obsessivo de bueiro. 

O porto-alegrense tornou-se a parábola bíblica de Jonas na baleia. Dias e noites confinado em estadas provisórias, vivendo de expectativa e apreensão, aguardando a possibilidade de retorno para conferir o estado de seus pertences. 

Uma vez expelido para a rua de novo, percebe, então, que não sobrou nada dentro dos lares. Nada se salvou. 

Quem passava pela avenida Getúlio Vargas (foto acima), ou pelas ruas Dezessete de Junho, Almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, Joaquim Nabuco, ou pela Travessa dos Venezianos, ou pela Praça Garibaldi, ou pelos arredores da Avenida Sertório não acreditava na montanha de objetos e mobiliários estragados pela enchente. Eram barricadas de salas desmontadas, de cozinhas desfiguradas, de quartos estraçalhados ‒ pedaços de lugares postos a pique. 

Seguindo a orientação da prefeitura para deixar itens em frente às residências e comércios, a população não esperava tamanha destruição. Milhares de toneladas de resíduos, de madeira, de estofados e eletrodomésticos formaram um bazar do desespero. 

A impressão é que havia sido montado um brique dos escombros, do desamparo, de aparelhos sem condições de uso. Os curiosos vistoriaram os materiais com pena e compaixão. Eram ‒ sim ‒ lembranças extintas, avariadas, desprovidas de conserto. 

Tenho vários amigos que residiam na parte baixa dos locais e ainda conservavam a esperança de resgatar alguma coisa. Enquanto não regressavam para os seus apartamentos, mantinham a miragem otimista de que parte de seus ambientes permanecia intacta. Quando fizeram a faxina, descobriram a perda total. Nem a louça escapou, muito menos as roupas. Gavetas, armários, baús não serviram de cofre contra a correnteza. Nenhum cadeado protegeu qualquer relíquia, qualquer tesouro. 

Nos térreos, ilusões não resistiram. 

Momentos inesquecíveis extraviaram seus registros. Trata-se de uma amnésia coletiva: casamentos sem certidão, plantas residenciais sem escrituras, filhos sem álbum de fotos. Não existe como tirar uma segunda via de uma vida inteira. 

Quem tinha feito campanha por Pix para ajudar outros flagelados começou a fazer arrecadação para si mesmo. 

(Do jornal Zero Hora, 22 de maio de 2024) 

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