quinta-feira, 30 de maio de 2024

Um amor que a água levou

 Mário Corso

Querida chuva: 

Eu te amava. Você sabia que eu te esperava com prazer. Apreciava teu aroma quando o vento te anunciava. Depois da despedida, saboreava o hálito verde da terra, agradecendo-te a água recebida. Tu eras generosa. 

Gostava do teu barulho dedilhando as telhas, a melhor música para dormir. Ouvia-se uma sinfonia de pingos, era um som na pedra, outro no balde, outro no zinco. 

Eras uma vassoura do pó do mundo, lavavas as calçadas diligente, fazias as folhas brilharem outra vez. Tua atmosfera de frescor deixava o ar agradável, limpo, melhor pra respirar. 

Comentei contigo que algum recôndito pedaço da minha alma é de planta. Ficava saciado com tua umidade mágica. 

Um que outro não gostava de ti. Diziam que estragavas festas no jardim, não deixavas a roupa secar, fazias barro, atrapalhavas o trânsito, resfriavas os velhinhos, mas eu sempre estive do teu lado. 

Eu tive a sorte de ter um bom teto, sem furos, mas até as goteiras, quando apareciam, acompanhavam teu charme. Era um pouquinho de ti dentro de casa. 

Tu eras vida, felicidade, um convite para molhar-se. Nunca decidi se o melhor era jogar futebol na lama, ou andar de bicicleta contigo, aproveitando para levantar a água das poças que criavas. Tudo em ti era benfazejo e renovador. 

Quando me visitavas no inverno, estava trancado em casa. Era o prenúncio de bolinhos ‒ que levam teu nome ‒ e conversas ao redor do fogão à lenha. 

Por esses dias, tudo mudou. O amor que sentia por ti transformou-se em medo. Não te reconheço. O que foi feito da tua suavidade? 

Hoje, quando o céu escurece, fico inquieto. Perdi a alegria de te receber. É triste constatar que agora só me trazes dor. 

Como sempre fomos sinceros, posso te dizer: perdestes a educação que tinhas. Agora, chegas de visita e não sabes a hora de partir. Perdeste também a mão, a ponderação, só vens como chuva grossa, excessiva, malvada. 

Tu tanto choves, que agora chove tristeza dentro mim e dos meus. Antes tu acariciavas nosso rosto com pingos, hoje nos açoitas, derrubas, carregas.  

Tuas águas levaram as boas memórias de quando estivemos juntos. Em dias de tantas perdas, foi difícil despedir-me do amor que tinha por ti. 

(Crônica do jornal Zero Hora, 29 de maio de 2024)

3 comentários:

  1. Essa crônica descreveu o sentimento de todos os Gaúchos.

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  2. MUITO SE ESCREVEU SOBRE A TRAGÉDIA NO RGS, MAS ESTE TEXTO É MUITO BONITO E MESMO NAS TRAGÉDIAS A POESIA SE MANIFESTA.

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    1. Amigo Deraldo Mancini, quando li essa crônica percebi que ela dizia exatamente o que muitos brasileiros e nós, gaúchos em especial, estávamos todos sentindo. Texto trágico, mas mesmo assim poético. (Nilo da Silva Moraes)

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