quinta-feira, 9 de maio de 2024

A vida depois da água

 Nílson Souza


Imagem CNN

Quando a água baixar, seremos os mesmos? 

Creio que não. Vai demorar um bom tempo para que voltemos a olhar para os céus do Rio Grande sem desconfiança ou temor. Cada vez que as nuvens escuras esconderem o sol, vamos lembrar daquele dia sombrio de abril em que as primeiras águas do nosso exclusivo dilúvio bíblico começaram a descer sobre Santa Maria ‒ a cidade que registrou o maior volume de chuva do planeta ‒ e sobre outras concentrações urbanas do território gaúcho. 

Tão cedo não esqueceremos desse furacão líquido que provocou mortes, desabrigou famílias, dissolveu montanhas, destruiu estradas e pontes como se fossem, apenas e ao mesmo tempo, protagonistas e cenário de um filme apocalíptico. Será difícil apagar de nossa memória visual aquelas pessoas penduradas nos telhados de suas casas ‒ último refúgio de lares transformados em escombros pelo alagamento ‒, seres humanos desesperados, animais domésticos acuados, destroços de habitações e de histórias de vida. 

Não seremos os mesmos porque teremos que incluir no arquivo de nossas lembranças, para sempre, cenas verdadeiramente tormentosas: nossas cidades queridas feridas, nossas aldeias natais arrasadas, plantações destruídas, ruas interrompidas, calçadas enlameadas. Como porto-alegrense, jamais voltarei a caminhar pela Praça da Alfândega da nossa amada Feira do Livro ou pelo calçadão de meus passeios cotidianos na Zona Sul sem vislumbrar nesses caminhos a onda de água suja que por lá passou. Decididamente, quando a água baixar não poderemos mais ser os mesmos. 

Mas podemos ser mais fortes, mais solidários, mais esperançosos. Os primeiros dias e noites sombrios da inundação também revelaram o lado luminoso da alma humana do nosso povo. Um Rio Grande de bravura e solidariedade ergueu-se da tragédia desde o primeiro pingo de água, com muita gente valente encarando o infortúnio, tanto na luta pela sobrevivência quanto no socorro às vítimas e no acolhimento dos desabrigados. A água ainda estava subindo, tormentosa, e milhares de heróis anônimos já estava se lançando na correnteza, pilotando jet-skis, barcos, helicópteros; outros e outras fizeram correntes de orações, de doações, de arrecadações; muitos prepararam comida, sanduíches, água e levaram para os necessitados; vários abriram suas próprias casas para receber parentes, amigos e até desconhecidos. 

Quando a água baixar, continuaremos sendo gaúchos. 

(Do jornal Zero Hora, 7 de maio de 2024)


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