Nílson Souza
Perdoem-me a literatura numa hora dessas, mas é nos livros que busco refúgio para o cérebro e o coração quando fica difícil suportar a realidade, como vem ocorrendo nestes dias tormentosos no nosso pampa alagado. Em Macondo ‒ quem leu Cem Anos de Solidão, do extraordinário Garcia Márquez, sabe do que estou falando ‒, choveu durante quatro anos, 11 meses e dois dias. E, no entanto, os Aurelianos e José Arcádios sobreviveram para protagonizar uma história encantadora de muitas gerações.
‒ Mas era realismo fantástico! ‒ poderão argumentar alguns leitores mais pessimistas do que este escriba.
É verdade. Porém, a ficção existe justamente para nos proporcionar oportunidades de viver outras vidas além da nossa. Como diz outro grande das letras latino-americanas, o peruano Vargas Llosa, a literatura nos permite “saborear outras aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração”.
Pois bem, depois de destruir casas, arrasar plantações, encharcar almas e levar vidas ‒ exatamente como está fazendo no nosso Rio Grande amado ‒, a chuva parou na vila imaginária do escritor colombiano. Ele relata: “Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo...”.
E aí, sabem o que aconteceu? Os sobreviventes da catástrofe sentaram-se no meio da rua para se aquecer e conversar. Então um passante curioso perguntou-lhes o que tinham feito para não se afogar na tormenta que levara tudo por diante. Deram-lhe uma resposta coletiva:
‒ Nadamos!
Nadar, no caso, não significa apenas se deslocar na água com as mãos em forma de concha, em movimento coordenado de braços, pernas e respiração. Nadar é, acima de tudo, resistir. Resistir à gravidade, à correnteza, à lama, às perdas, às adversidades e ao desânimo.
A gauchada está resistindo bravamente e isso nos dá certeza de que vamos sobreviver. E quando o sol voltar a brilhar sobre nossos telhados e nossas cabeças, também nos sentaremos no meio deste pampa precioso e malcuidado para alinhar os detalhes das histórias que haveremos de contar para os nossos netos, e que eles repetirão para os seus próprios descendentes por sucessivas gerações:
‒ Meu avô contava que no dilúvio de 2024 um cavalo ficou ilhado durante quatro dias, de pé sobre um telhado de zinco, sem comer nem dormir, e saiu da enrascada de barco...
E não faltará um menino mais cético para questionar:
‒
Realismo fantástico outra vez, vovô?
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