domingo, 24 de setembro de 2023

Dois pequenos grandes contos

 O prejuízo

Meu pai perguntou: “por que você fez isto?” E não disse mais nada. Não respondi coisa alguma nem sabia o que responder. Fiquei olhando ora para a parede, ora para o telhado, morrendo de vergonha. 

Meu pai entrou no banheiro, sem me olhar, urinou, fez a barba, depois saiu de lá novamente sem olhar para mim. Sentou para tomar café da manhã sem me chamar, como sempre fazia. Eu não aguentava mais o peso do seu silêncio quando ele resolveu abrir a boca ainda cheia de café com leite e cuscuz para desabafar, entre enraivecido e queixoso: 

“Vou ter que trabalhar o final de semana inteiro, fazer hora extra para poder pagar a vidraça do seu Nestor que você destruiu, moleque.” 

Aí criei coragem e disse: “não precisa, quem vai pagar a vidraça sou eu.” 

Meu pai me olhou indiferente e incrédulo, como se olhasse para uma parede que fala, e tomei a dianteira antes que ele dissesse qualquer coisa: 

“Deixe, pai. Vendo meu time de botão, vendo laranja descascada na porta de casa e pago essa droga.” 

Meu pai arregalou os olhos e depois desamarrou a cara. Abriu um sorriso que até hoje lembro como o mais bonito que já vi no rosto dele. Só não sei se foi porque eu disse que pagava o prejuízo ou se foi por causa do “essa droga”. 

Garrincha

 

Quando o juiz apitou, encerrando a partida no campinho de subúrbio, aconteceu o grande espetáculo. 

Um pequeno passarinho muito conhecido naquele lugar, chamado garrincha, pousou sobre a bola de couro esquecida no campo de batalha. Meio pardo e de asas e cauda listradas de preto, também conhecido como garriça ou cambaxirra, o pássaro, que tem nome de craque, deu alguns pulinhos desajeitados sobre a pelota e bateu asas. 

Nesse instante, como se tivesse sido chutada violentamente por um jogador invisível, a bola também bateu asas e subiu. Um lançamento perfeito na direção do céu. Os vinte e dois jogadores titulares, mais os reservas, técnicos, dirigentes e todos os torcedores ficaram parados no estádio. Os olhos voltados para o voo maluco da bola, que voou até sumir. 

E como o dia já estava mesmo começando a virar noitinha, a lua apareceu de repente e engoliu a redonda – como a chamam os locutores esportivos. A bola virou lua, lua cheia, bem cheia e muito brilhante. O campo ficou tão iluminado que os atletas sentiram vontade de começar outro jogo, e só não o fizeram porque o cansaço da peleja disputadíssima não permitiu. O menino quis saber se a bola seria recuperada e o pai disse que não. “Está bem lá em cima, limpa, linda e cheia. Iluminando os grandes estádios, nas grandes cidades, ou os campinhos mais escondidos nos fins de mundo. 

(Do livro “Cabelos molhados”, Contos de Luís Pimentel)


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