terça-feira, 26 de setembro de 2023

O jogo da sapata

 (Do livro “Nos Meus Tempos de Piá”, de Pércio de Moraes Branco)

Uma das brincadeiras preferidas na minha infância era a sapata. Não sei de onde vem esse nome, mas pelo que se vê no Google ele é usado, talvez, só no Rio Grande do Sul. Em outros Estados, ela tem o nome de avião, macaco ou macaca, canção, maré, academia ou cademia, boneca, amarelinha e macacão. Destes, o mais comum deve ser amarelinha, nome que eu via já nas histórias em quadrinhos da minha meninice, que encontrei em várias cidades, inclusive gaúchas, e que meus netos aprenderam a usar. Ele não tem nada a ver com a cor amarela; vem do francês jeu de marelle (jogo de marelle, em tradução livre), pois na França “marelle” é o nome da pedrinha que cada jogador usa. 

(...) Na amarelinha tradicional, são nove quadrados e um semicírculo (o céu), mas pode haver pequenas variações. 

Nas cidades em que vivi, no RS e em outros dois Estados, parece que só existe a amarelinha, com este ou outro nome. Nas histórias em quadrinhos, também só se vê amarelinha. Meus netos (nenhum gaúcho) só conhecem a amarelinha. 

A sapata não tem céu, não tem semicírculos nem quadrados enfileirados. E nela se joga apoiando os dois pés no chão, não apenas um como na amarelinha. 

Na sapata lagoense, cada jogador usa uma pedrinha ou pedaço de tijolo, madeira, metal, enfim qualquer peça achatada para que não role ao ser jogada no chão. 

O primeiro jogador pega sua pedrinha e a coloca na casa número um. A seguir percorre toda a sapata pisando uma vez em cada casa até a casa oito. Retorna do mesmo modo, pega sua pedra e sai da sapata.

A seguir faz a mesma coisa colocando sua pedra na casa dois, e assim sucessivamente, enquanto não errar. Caso erre, outro jogador passa a jogar. 

Quando um jogador faz a casa oito (na sapata é oito e nove na amarelinha), completa a primeira fase no jogo, que é a mais fácil.

Antes de descrever a fase seguinte, porém, vejamos algumas regras: 

− O jogador jamais pode queimar (pisar em qualquer um dos riscos do desenho). 

− Ele não pode também sair da sapata antes de recolher a pedra. 

− Se errar o arremesso da pedra e ela cair na casa errada, para de jogar e passa a vez ao jogador seguinte. 

− Não se pode pisar com os dois pés numa mesma casa. 

Nenhum desses erros elimina o jogador do jogo, mas o obriga a parar na etapa a que chegou e ceder a vez a outro competidor. 

A segunda fase do jogo tem etapas fáceis, algumas um tanto difíceis e uma superdifícil. 

A primeira etapa chama-se “mãozinha’. O jogador deve percorrer toda a sapata como antebraço na horizontal e voltado para frente, pondo a pedra sobre a mão fechada, sem deixá-la cair. Na etapa seguinte, o “pezinho”, a pedra é colocada sobre um dos pés. A seguir, no “ombrinho”, ela é colocada sobre um dos ombros e, depois, sobre a cabeça, “cabecinha”. 

Depois disso, vem o “manquinho”. Nesta, sem usar a pedra, o jogador deve percorrer toda a sapata pulando sobre um pé apenas. Depois, vem a parte mais difícil, o “queimei?”. Nessa fase, o jogador olha bem a sapata para memorizar seu desenho no chão, depois, com a cabeça levantada de modo a não ver a sapata, passa a percorrer todas as casas, perguntando, após pisar em cada uma das casas: “Queimei?”. Se não queimou, passa para casa seguinte. Chegando às casas sete e oito, deve fazer o percurso de volta, sempre sem queimar. 

Quem completa o “queimei?” faz jus a um prêmio. De costas para a sapata, joga  sua pedra para trás. A casa onde ela cair passa a ser “propriedade” sua, e os demais jogadores só poderão ali pisar se ele autorizar. 

A partida só termina quando todas as casas tiverem dono, possibilitando tão remota que nunca vi acontecer. 

(Do Almanaque Gaúcho, Zero Hora, setembro de 2023)


 

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