segunda-feira, 27 de novembro de 2023

A voz teatina da memória

 Campereada 

Paulo Mendes

Imagem da internet

A memória, ah, a memória... Essa china maleva, traiçoeira por tantas vezes, por outras amiga que vem de mate recém-cevado na mão, com erva nova e grossa batida em carijo de guajuvira. Sim, ela nos traz tantos sentimentos que tivemos ao longo de nossa vida, assim como os ruins e os buenos, os lindos, e até aqueles misturados, os que a gente não consegue diferenciar. Talvez os dois ao mesmo tempo. Hay coisas que vivem na penumbra, no limbo, assim e assado, inqualificáveis na definição por si própria. Ela vem sorrateira, a memória, chega de mansinho, como andorinhas de verão, como quem não quer nada, nessas madrugadas chuvosas, nos pega no catre ainda, ou nas tardes de desencilha, no galpão, ao redor do fogo, chimarreando, escutando o roncar da cuia. E abre seu poncho sobre nós. Ouvimos a voz conhecida, maviosa, antiga, e até esquecida dessas lembranças teatinas do pensamento. 

Por exemplo: quando chegava o fim de novembro, lá na Vila Rica, essa sensação me invadia, todos os anos. Eu me esforçava nas aulas e, portanto, passava por média no colégio. Era bolsista, e meu pai, seu José Mendes, costumava alertar, naquele jeitão rústico de homem campeiro: “Se rodar e perder a bolsa, sai do colégio e vai trabalhar de peão, no cabo da enxada, debaixo do sol quente de janeiro.”  Nunca acreditei que ele fizesse isso, mas pelo bem ou pelo mal, era melhor não facilitar. Por isso, no fim do mês, ou bem no início de dezembro, estava liberado para ir para casa, de férias. Era o que todo mundo queria. Via que meus colegas festejavam, e os outros que pegavam recuperação, ficavam inconsoláveis. 

Aí, meus amigos, residia a questão: eu detestava que as aulas terminassem, pois perdia o contato com os colegas, os cadernos, os livros, os professores que sempre falavam coisas novas e curiosas. Eu era fã da biblioteca da escola, que, embora modesta, pra mim, era um campo fértil de conhecimento e sabedoria. Queria jogar bola pela manhã e no recreio, antes da irmã Isolda tocar a sineta e nós, todos suados, irmos fazer fila, cantar o Hino Nacional, rezar e subir as escadas. Eu vivia no campo, sem companhia, solito, ajudando dona Mirica, minha mãe, no bolicho beira de estrada. Trabalhando em pequenas lavouras de milho, de cana, mandioca, tirando leite na mangueira. Ah, o colégio era melhor. Por isso, minha evidente tristeza e desconsolo de fim de ano. 

Hoje, passado tanto tempo, tantos invernos e tantos verões, olho o calendário do Banco do Brasil e percebo que estamos no final de outro ano. Nas ruas, é perceptível aquela movimentação característica da época natalina, correria e tensão. Estou vivo, isso é o que importa, com planos, projetos e vontade de viver. As emoções se misturam, de novo, porque chega a alegria de um lado, pelas conquistas, da avaliação das coisas superadas e, por outro, a tristeza pela certeza das perdas, dos que partiram, uma sensação de estar um pouco mais sozinho. De que quanto mais caminhamos, mais chegamos ao fim. Não, não desistiremos nunca. O futuro ninguém sabe onde começa ou termina. 

Vem, memória, traga-me uma imagem de esperança. 

‒ Estou aqui, sou a memória, que machuca, cura e afaga. Vocês, os pobres mortais, sobrevivem em mim, na vida dos antepassados. Acreditem em mim, só assim terão outra oportunidade sobre o Pampa. 

(Do Correio do Povo, 27 de novembro de 2023) 

Glossário* 

Teatina: gaudéria (sem dono), andar de estância em estância, vida sem rumo. 

China: mulher descendente de índio ou caboclo, de cor morena. Mulher e vida fácil, meretriz. 

Maleva: rancorosa, malfeitora, malvada. 

Carijo: jirau, onde se colocam os ramos de erva-mate para crestá-los ao calor do fogo. 

Guajuvira: arbusto que fornece excelente madeira. 

Poncho: capa retangular, de lã impermeável, com uma abertura no meio, usada para enfrentar frio e chuva. 

Peão: trabalhado de estância. 

Pampa: planície muito extensa com pouquíssimo mato, mas muito rica em pastagens, típica de certas regiões do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. 

*Glossário do livro “Dicionário gaúcho”, de Alberto Juvenal de Oliveira. 

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