Discurso LV do livro
“Agudeza e Arte do Engenho”
Baltasar Gracián (jesuíta espanhol do séc. XVII)
Baltasar Gracián (jesuíta espanhol do séc. XVII)
Era a Verdade esposa legítima do Entendimento,
porém, a Mentira, sua grande êmula,
resolveu desterrá-la de seu tálamo e derrubá-la de seu trono. Para isto, que
embustes não tentou? Que trapaças não cometeu? Começou por desacreditá-la como
grosseira, desalinhada, desabrida e néscia, e, ao contrário, por vender-se a si
mesma como cortês, discreta, bizarra e aprazível; e, se bem que feia por
natureza, procurou desmentir suas faltas com seus enfeites. Tomou por árbitro
ao Gosto, com que, em pouco tempo,
tanto fez, que tiranizou para si o rei das potências. Vendo-se a Verdade desprezada e ainda perseguida,
buscou amparo na Agudeza;
comunicou-lhe seus desgostos e consultou-a sobre seu remédio.
‒ Verdade amiga, disse a
Agudeza, não há manjar mais desabrido, nestes tempos estragados, que um
desengano a seco – mas, que digo, desabrido! – não há bocado mais amargo que
uma verdade desnuda. A luz que fere diretamente, atormenta os olhos de uma
águia e de um lince, quanto mais dos que fraquejam. Para isto, os sagazes
médicos do ânimo inventaram a arte de dourar as verdades e açucarar os
desenganos. Quero dizer (e observa-me bem esta lição, estima-me este conselho)
que, política, produza-os: vista-os segundo o costume do próprio Engano,
disfarce-os com os seus próprios adornos, que, com isso, eu lhe asseguro o
remédio e ainda a vitória.
Abriu os olhos a Verdade e começou
desde então a andar com artifício; usa das invenções, introduz-se por rodeios,
vence com estratagemas, pinta longe o que está muito perto, fala do presente no
passado, propõe naquele sujeito o que quer condenar neste, aponta um para
indicar outro, deslumbra as paixões, desmente os afetos e, por engenhoso
circunlóquio, acaba sempre por chegar ao ponto que pretendia.
Uma mesma verdade pode vestir-se de
muitos modos; assim, por um gostoso apólogo, com o doce e fácil de sua ficção,
a verdade persuade eficazmente.
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