D. Pedro I - 1830
Nos dez anos em quer trabalhei no
paço, a amizade e o favor do Príncipe nunca me faltaram. Tornamo-nos
verdadeiramente íntimos e D. Pedro considerava-me um alívio para as suas aulas
de cravo, fagote, francês, inglês, italiano, espanhol, esgrima e boas maneiras.
Quanto a mim, mais particularmente,
coube-me a graça de ter sido escolhido como favorito do Príncipe D. Pedro no
que diz respeito à intermediação de relações não espirituais com as filhas do
belo sexo, serviço que as pessoas de menor instrução, na falta de conhecimentos
mais sutis sobre essa arte, denominam alcoviteiro.
Devo dizer, entretanto, que, nos dez
anos em que fui criado do paço, não era uma coisa incomum o ser convidado por
D. Pedro para noitadas, e que era menos incomum ainda essas noitadas terminarem
em alcovas de senhoras da sociedade fluminense. O que mudou, depois da partida
de D. João VI, é que eu fui, por assim dizer, oficializado nessa função, ou
seja, passava os meus dias a levar e trazer recados, marcar encontros, distrair
maridos e coisas outras.
Esta não era uma tarefa que me
fizesse suar. A maioria das mulheres dava-se por muito honrada em ser convidada
a deitar com o Imperador, e os maridos, quando não se sentiam orgulhosos por
emprestarem suas esposas ad usum regis,
protestavam apenas para tentar ganhar algumas patacas.
Eu, modéstia à parte, houve-me muito
bem nessas missões diplomáticas, mesmo nas mais custosas. Alguns maridos – e
uns poucos pais – tinham um tanto a mais de orgulho, ou de astúcia, que me
dificultaram o trabalho, obrigando o Príncipe a lançar mão de mais moedas do
que o previsto. Havia também alguns puritanos para os quais o dinheiro não era
tudo; para estes casos mais tortuosos não faltavam comendas ou promoções. Não
poderei, sem desonra da justiça, deixar de nomear alguns dos casos que mais
exigiram dos meus dotes de embaixador:
Clemência Saissait, mulher de Pedro
Saissait*, lojista francês;
Adozinda Ferreira, verdureira,
enteada de Luís Adelmo Ferreira;
Noemi e Georgette Vallency,
bailarinas francesas irmãs de Jean Vallency;
Maria do Rosário, Maria das Dores e
Maria das Graças, filhas do roupeiro Antônio Cauper*;
Luisinha Albuquerque, esposa do tenente José
Severiano de Albuquerque,
e Maria Joana Sodré, filha do
sargento Theotonio Sodré*.
*Pedro Saissait era comerciante de roupas e foi nomeado fornecedor
oficial do paço. Apesar de ser apenas o roupeiro do paço.
*Antônio Cauper deixou oito casas de herança para suas três filhas.
*José Severiano e Theotonio Sodré morreram coma patente de general.
*Antônio Cauper deixou oito casas de herança para suas três filhas.
*José Severiano e Theotonio Sodré morreram coma patente de general.
Mas a dificuldade não era a regra. O
primeiro negócio que realizei, por exemplo, foi simples e singelo, e eu passo a
contá-lo a partir de agora.
Havia uma negrinha, de nome Andrezza,
que todas as quintas-feiras vinha trazer ao paço doces feitos por ela mesma e
por algumas freiras de um convento, muito apreciados por toda a família imperial.
Um dia, estando eu e o Príncipe D.
Pedro à entrada da cozinha, vimo-la passar, entrar no recinto e deixar os doces
sobre uma mesa. Meu amo não pôde conter o comentário lisonjeiro:
“Belo
animal, não, Chalaça?”
“Bons dentes
e belos quartos, Alteza.”
“Quero que a
arranjes para mim. Acho que daria uma montaria e tanto.”
Dias depois, lá estava eu – fiel
cumpridor das ordens – a negociar com o capelão a compra da esbelta negrinha.
Assustado, o bom padre disse que não era permitido ao convento negociar
escravos. Eu ponderei que a Princesa Leopoldina havia de ficar muito satisfeita
se aquela talentosa quituteira pudesse se mudar para o palácio imperial, e
assim poder atender mais prestativamente os súbitos desejos de comer quindins
que tinha o Príncipe.
No sábado seguinte, apresentei a nova
quituteira do paço a D. Leopoldina. A Imperatriz estranhou o presente, mas pôs
tudo na conta da generosidade do capelão.
Andrezza pariu uma criança alguns
meses depois. Como recompensa pelo seu bom serviço e discrição, ganhou do
Príncipe uma casa com mobília na rua da Viola. Eu mesmo ali fui algumas vezes
quando tinha vontade de comer quindins.
(Relatos do diário do
conselheiro Francisco Gomes da Silva, o Chalaça. contidos no livro “Galantes Memórias e
Admiráveis Aventuras do Virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça” Trazidas à luz por
José Roberto Torero – Companhia das Letras)
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