quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Chalaça, o alcoviteiro de Dom Pedro I


D. Pedro I - 1830

Nos dez anos em quer trabalhei no paço, a amizade e o favor do Príncipe nunca me faltaram. Tornamo-nos verdadeiramente íntimos e D. Pedro considerava-me um alívio para as suas aulas de cravo, fagote, francês, inglês, italiano, espanhol, esgrima e boas maneiras.

Quanto a mim, mais particularmente, coube-me a graça de ter sido escolhido como favorito do Príncipe D. Pedro no que diz respeito à intermediação de relações não espirituais com as filhas do belo sexo, serviço que as pessoas de menor instrução, na falta de conhecimentos mais sutis sobre essa arte, denominam alcoviteiro.

Devo dizer, entretanto, que, nos dez anos em que fui criado do paço, não era uma coisa incomum o ser convidado por D. Pedro para noitadas, e que era menos incomum ainda essas noitadas terminarem em alcovas de senhoras da sociedade fluminense. O que mudou, depois da partida de D. João VI, é que eu fui, por assim dizer, oficializado nessa função, ou seja, passava os meus dias a levar e trazer recados, marcar encontros, distrair maridos e coisas outras.

Esta não era uma tarefa que me fizesse suar. A maioria das mulheres dava-se por muito honrada em ser convidada a deitar com o Imperador, e os maridos, quando não se sentiam orgulhosos por emprestarem suas esposas ad usum regis, protestavam apenas para tentar ganhar algumas patacas.

Eu, modéstia à parte, houve-me muito bem nessas missões diplomáticas, mesmo nas mais custosas. Alguns maridos – e uns poucos pais – tinham um tanto a mais de orgulho, ou de astúcia, que me dificultaram o trabalho, obrigando o Príncipe a lançar mão de mais moedas do que o previsto. Havia também alguns puritanos para os quais o dinheiro não era tudo; para estes casos mais tortuosos não faltavam comendas ou promoções. Não poderei, sem desonra da justiça, deixar de nomear alguns dos casos que mais exigiram dos meus dotes de embaixador:

Clemência Saissait, mulher de Pedro Saissait*, lojista francês;
Adozinda Ferreira, verdureira, enteada de Luís Adelmo Ferreira;
Noemi e Georgette Vallency, bailarinas francesas irmãs de Jean Vallency;
Maria do Rosário, Maria das Dores e Maria das Graças, filhas do roupeiro Antônio Cauper*;
Luisinha Albuquerque, esposa do tenente José Severiano de Albuquerque,
e Maria Joana Sodré, filha do sargento Theotonio Sodré*.

*Pedro Saissait era comerciante de roupas e foi nomeado fornecedor oficial do paço. Apesar de ser apenas o roupeiro do paço. 

*Antônio Cauper deixou oito casas de herança para suas três filhas. 

*José Severiano e Theotonio Sodré morreram coma patente de general.


Mas a dificuldade não era a regra. O primeiro negócio que realizei, por exemplo, foi simples e singelo, e eu passo a contá-lo a partir de agora.

Havia uma negrinha, de nome Andrezza, que todas as quintas-feiras vinha trazer ao paço doces feitos por ela mesma e por algumas freiras de um convento, muito apreciados por toda a família imperial.

Um dia, estando eu e o Príncipe D. Pedro à entrada da cozinha, vimo-la passar, entrar no recinto e deixar os doces sobre uma mesa. Meu amo não pôde conter o comentário lisonjeiro:

“Belo animal, não, Chalaça?”
“Bons dentes e belos quartos, Alteza.”
“Quero que a arranjes para mim. Acho que daria uma montaria e tanto.”

Dias depois, lá estava eu – fiel cumpridor das ordens – a negociar com o capelão a compra da esbelta negrinha. Assustado, o bom padre disse que não era permitido ao convento negociar escravos. Eu ponderei que a Princesa Leopoldina havia de ficar muito satisfeita se aquela talentosa quituteira pudesse se mudar para o palácio imperial, e assim poder atender mais prestativamente os súbitos desejos de comer quindins que tinha o Príncipe.

No sábado seguinte, apresentei a nova quituteira do paço a D. Leopoldina. A Imperatriz estranhou o presente, mas pôs tudo na conta da generosidade do capelão.

Andrezza pariu uma criança alguns meses depois. Como recompensa pelo seu bom serviço e discrição, ganhou do Príncipe uma casa com mobília na rua da Viola. Eu mesmo ali fui algumas vezes quando tinha vontade de comer quindins.


(Relatos do diário do conselheiro Francisco Gomes da Silva, o Chalaça. contidos no livro “Galantes Memórias e Admiráveis Aventuras do Virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça” Trazidas à luz por José Roberto Torero – Companhia das Letras)




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