terça-feira, 6 de setembro de 2016

Chalaça, o amigo do rei.



Das muitas pessoas que passaram pela vida de D. Pedro I, três em especial gozaram da estima e da amizade do príncipe regente: José Bonifácio de Andrada e Silva, como sábio conselheiro; dona Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, amante e influenciadora política; e  Chiquinho Gomes, mais conhecido como Chalaça.

Mas quem foi o Chalaça? Qual a razão desse apelido? E o que ele fez de tão notável para gozar da estima e da confiança de D. Pedro I? É o que vamos saber agora. Francisco Gomes da Silva, português de nascimento, chegou ao Rio de Janeiro na companhia de um tio, que era relojoeiro e ourives. Como não tivesse habilidade suficiente, desistiu de seguir a profissão do tio e instalou-se então como barbeiro numa pequena loja na Rua do Piolho (atual Rua da Carioca. Muito conversador, bom contador de histórias e extremamente espirituoso nas respostas de improviso, ganhou o apelido de Chalaça,* pela sua maneira debochada de se expressar. Além de rápido e perfeito no uso da navalha, do porrete e do rabo-de-arraia.

Havia naquela época, na Rua da Viola, no Rio de Janeiro, uma pensão de propriedade de Maria Pulquéria, chamada também de Maricota Corneta, porque dava o sinal das refeições tocando uma corneta. Nos fins de tarde, quando chegava a noitinha, a pensão de Maricota Corneta se enchia do que tinha de melhor na malandragem e na valentia. Ali se reuniam os representantes da elite do submundo. Às vezes a polícia dava uma batida na espelunca e levava um magote de desordeiros. Outras vezes a polícia tinha que fugir às pressas, ameaçada pelos frequentadores da pensão.

De tanto ouvir falar naquela casa, um dia D. Pedro I resolveu conhecer de perto o que acontecia na pensão de Maricota Corneta. Vestiu uma capa espanhola, que lhe cobria o rosto, e se fez acompanhar de um robusto guarda-costas. Com aquele disfarce ele pretendia ser confundido com um forasteiro paulista. Entrou e se sentou a uma mesa tosca com o tampo encardido. E entre os alegres fregueses, ali estava Chalaça, dedilhando um violão e fazendo versos debochados de improviso, num desafio com um preto velho, ex-escravo, que tinha sido alforriado porque salvara a vida da rainha Carlota Joaquina num acidente de cavalo. D. Pedro reconheceu o preto velho, mas não sabia quem era o outro desafiante.

De repente, José Januário, o preto velho, olhou para D. Pedro e achou que se tratasse realmente de um paulista infiltrado no Rio de Janeiro. E fez logo um verso de improviso, dirigindo-se ao estranho:

Paulista é gente manhosa,
sem fé e sem coração.
É gente que se leva a pau,
a sopapo e a pescoção.

A plateia explodiu numa gargalhada e todos olharam imediatamente para o suposto paulista. E aí então D. Pedro, nervoso e bastante irritado, levantou-se, afastou a gola da capa, mostrou o rosto para todos e deu uma ordem ao seu robusto guarda-costas:

‒ Meta o pau neste negro canalha!

Ao reconhecer o príncipe, o negro fugiu assustado. Os valentes pararam de rir e foram saindo de mansinho. E assim ficaram apenas três pessoas no salão: Dom Pedro, o guarda-costas e o sorridente Chalaça. Quando o guarda-costas pulou sobre ele de porrete em punho. Chalaça gingou o corpo, livrou-se do golpe e aplicou um certeiro rabo-de-arraia no guarda-costas, que foi logo ao chão. Sem perda de tempo, Chalaça agarrou-o pelas roupas e jogou-o pela janela, atirando-o no pátio da pensão.

E aí então sobraram apenas dois homens no salão: D. Pedro e Chalaça. D. Pedro, ainda raivoso e enfurecido. E Chalaça, calmo e sereno, como se nada tivesse acontecido, apanhou do chão seu grande chapéu e numa delicada curvatura de gentil-homem, descrevendo com o sombrero um semicírculo no ar e quase tocando o assoalho, encarou D. Pedro com um largo sorriso:

‒ Permita, Vossa Alteza, que eu me apresente. Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, pronto para obedecer às suas ordens.

O humor de D. Pedro mudou no mesmo instante. Soltou uma gostosa gargalhada e falou:

‒ Chalaça, tu és um homem de verdade!

E o esperto Chalaça não perdeu tempo, entabulando logo uma conversa com o príncipe:

‒ Pois então saiba, Vossa Alteza, que eu tenho uma tia que prevê o futuro. E um dia ela disse que eu ainda seria um Comendador.

‒ Pois então saiba, meu amigo, que de hoje em diante és o Comendador Chalaça.

E já no dia seguinte, o esperto barbeiro Francisco Gomes da Silva fechou sua lojinha na Rua do Piolho, arranjou roupas pomposas e passou a frequentar os corredores e os salões do Palácio Imperial, como o Comendador Chalaça. E daquele dia em diante ele se tornaria um amigo do peito do irrequieto D. Pedro; seu alegre companheiro de serestas e de incríveis aventuras noturnas, para tormento e desgosto dos Ministros e da resignada Imperatriz Dona Leopoldina.


(Do livro “500 anos – Crônicas pitorescas da história do Brasil”,
de Eloy Terra)

O Chalaça já foi retratado como personagem no cinema e na televisão, interpretado por Giorgio Lambertini no filme "O Grito do Ipiranga" (1917); Emiliano Queiroz no filme "Independência ou Morte" (1972);  Edwin Luisi na novela "Marquesa de Santos" (1984); no filme "Carlota Joaquina - Princesa do Brazil" (1995) e Humberto Martins na minissérie "O Quinto dos Infernos" (2002). Além destas obras, há também um livro de histórias em quadrinhos com o personagem: "Chalaça, o Amigo do Imperador", escrito por André Diniz e desenhado por Antonio Eder. O livro foi publicado pela Conrad Editora, em 2005. Há também o livro "O Chalaça" de José Roberto Torero da Editora Objetiva, editado em 1998. Na música foi retratado na ópera "O Chalaça", do compositor brasileiro Francisco Mignone, estreada em 1971 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

*Chalaça: substantivo feminino, dito ou feito espirituoso, zombeteiro; escárnio, gracejo, motejo, dito ou gracejo de mau gosto; chocarrice.

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