Das muitas pessoas que passaram pela
vida de D. Pedro I, três em especial gozaram da estima e da amizade do príncipe
regente: José Bonifácio de Andrada e Silva, como sábio conselheiro; dona
Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, amante e influenciadora política; e Chiquinho Gomes, mais conhecido como Chalaça.
Mas quem foi o Chalaça? Qual a razão
desse apelido? E o que ele fez de tão notável para gozar da estima e da
confiança de D. Pedro I? É o que vamos saber agora. Francisco Gomes da Silva,
português de nascimento, chegou ao Rio de Janeiro na companhia de um tio, que
era relojoeiro e ourives. Como não tivesse habilidade suficiente, desistiu de
seguir a profissão do tio e instalou-se então como barbeiro numa pequena loja
na Rua do Piolho (atual Rua da Carioca. Muito conversador, bom contador de
histórias e extremamente espirituoso nas respostas de improviso, ganhou o
apelido de Chalaça,* pela sua maneira
debochada de se expressar. Além de rápido e perfeito no uso da navalha, do
porrete e do rabo-de-arraia.
Havia naquela época, na Rua da Viola,
no Rio de Janeiro, uma pensão de propriedade de Maria Pulquéria, chamada também
de Maricota Corneta, porque dava o sinal das refeições tocando uma corneta. Nos
fins de tarde, quando chegava a noitinha, a pensão de Maricota Corneta se
enchia do que tinha de melhor na malandragem e na valentia. Ali se reuniam os
representantes da elite do submundo. Às vezes a polícia dava uma batida na
espelunca e levava um magote de desordeiros. Outras vezes a polícia tinha que
fugir às pressas, ameaçada pelos frequentadores da pensão.
De tanto ouvir falar naquela casa, um
dia D. Pedro I resolveu conhecer de perto o que acontecia na pensão de Maricota
Corneta. Vestiu uma capa espanhola, que lhe cobria o rosto, e se fez acompanhar
de um robusto guarda-costas. Com aquele disfarce ele pretendia ser confundido
com um forasteiro paulista. Entrou e se sentou a uma mesa tosca com o tampo
encardido. E entre os alegres fregueses, ali estava Chalaça, dedilhando um
violão e fazendo versos debochados de improviso, num desafio com um preto
velho, ex-escravo, que tinha sido alforriado porque salvara a vida da rainha
Carlota Joaquina num acidente de cavalo. D. Pedro reconheceu o preto velho, mas
não sabia quem era o outro desafiante.
De repente, José Januário, o preto
velho, olhou para D. Pedro e achou que se tratasse realmente de um paulista
infiltrado no Rio de Janeiro. E fez logo um verso de improviso, dirigindo-se ao
estranho:
Paulista é gente manhosa,
sem fé e sem coração.
É gente que se leva a pau,
a sopapo e a pescoção.
A plateia explodiu numa gargalhada e
todos olharam imediatamente para o suposto paulista. E aí então D. Pedro,
nervoso e bastante irritado, levantou-se, afastou a gola da capa, mostrou o
rosto para todos e deu uma ordem ao seu robusto guarda-costas:
‒ Meta o pau neste negro canalha!
Ao reconhecer o príncipe, o negro
fugiu assustado. Os valentes pararam de rir e foram saindo de mansinho. E assim
ficaram apenas três pessoas no salão: Dom Pedro, o guarda-costas e o sorridente
Chalaça. Quando o guarda-costas pulou sobre ele de porrete em punho. Chalaça
gingou o corpo, livrou-se do golpe e aplicou um certeiro rabo-de-arraia no
guarda-costas, que foi logo ao chão. Sem perda de tempo, Chalaça agarrou-o
pelas roupas e jogou-o pela janela, atirando-o no pátio da pensão.
E aí então sobraram apenas dois
homens no salão: D. Pedro e Chalaça. D. Pedro, ainda raivoso e enfurecido. E
Chalaça, calmo e sereno, como se nada tivesse acontecido, apanhou do chão seu
grande chapéu e numa delicada curvatura de gentil-homem, descrevendo com o
sombrero um semicírculo no ar e quase tocando o assoalho, encarou D. Pedro com
um largo sorriso:
‒ Permita, Vossa Alteza, que eu me
apresente. Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, pronto para obedecer às suas
ordens.
O humor de D. Pedro mudou no mesmo
instante. Soltou uma gostosa gargalhada e falou:
‒ Chalaça, tu és um homem de
verdade!
E o esperto Chalaça não perdeu tempo,
entabulando logo uma conversa com o príncipe:
‒ Pois então saiba, Vossa Alteza, que
eu tenho uma tia que prevê o futuro. E um dia ela disse que eu ainda seria um
Comendador.
‒ Pois então saiba, meu amigo, que de
hoje em diante és o Comendador Chalaça.
E já no dia seguinte, o esperto
barbeiro Francisco Gomes da Silva fechou sua lojinha na Rua do Piolho, arranjou
roupas pomposas e passou a frequentar os corredores e os salões do Palácio
Imperial, como o Comendador Chalaça. E
daquele dia em diante ele se tornaria um amigo do peito do irrequieto D. Pedro;
seu alegre companheiro de serestas e de incríveis aventuras noturnas, para
tormento e desgosto dos Ministros e da resignada Imperatriz Dona Leopoldina.
(Do livro “500 anos –
Crônicas pitorescas da história do Brasil”,
de Eloy Terra)
de Eloy Terra)
O Chalaça já foi retratado como
personagem no cinema e na televisão, interpretado por Giorgio Lambertini no
filme "O Grito do Ipiranga"
(1917); Emiliano Queiroz no filme "Independência ou Morte"
(1972); Edwin Luisi
na novela "Marquesa de Santos" (1984); no filme
"Carlota Joaquina - Princesa do Brazil"
(1995) e Humberto Martins na minissérie "O Quinto dos Infernos" (2002). Além
destas obras, há também um livro de histórias em quadrinhos com o personagem:
"Chalaça, o Amigo do Imperador", escrito por André Diniz
e desenhado por Antonio Eder. O livro foi publicado pela Conrad
Editora, em 2005. Há também o livro "O Chalaça" de José Roberto Torero da Editora
Objetiva, editado em 1998. Na música foi retratado na ópera "O
Chalaça", do compositor brasileiro Francisco
Mignone, estreada em 1971 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
*Chalaça: substantivo feminino, dito
ou feito espirituoso, zombeteiro; escárnio, gracejo, motejo, dito ou gracejo de
mau gosto; chocarrice.
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