Arthur Azevedo
Há muitos anos havia no Rio de Janeiro um
boticário, em cujo estabelecimento se reuniam todas as noite – das sete as dez
– uns indivíduos que não faziam outra coisa senão discutir sobre política.
Uma noite apareceu na roda, levado
por um dos mais velhos frequentadores da botica, certo oficial argentino,
revolucionário, que fora deportado da sua terra, e andava comendo o negro pão
do exílio... no “Frères Provençaux”.
Desde o instante em que esse elemento
exótico apareceu na botica, cessou completamente a cordura que havia naquelas
confabulações tranquilas e burguesas.
O argentino a propósito de tudo
deprimia os homens e as coisas do país que o agasalhava, poupando, nas suas
impertinências invectivas, apenas a nossa naturaleza.
A roda era pacata; nenhum dos
presentes tomava a peito, com o indispensável ardor, a defesa, aliás facílima,
da nossa terra; e quando um deles se atreveu a dirigir-se em voz mais alta ao
argentino, este de tal sorte gritou, gesticulou e regougou, e tantas vezes
bateu coma bengala no chão e na grade que separava o boticário dos seus
fregueses que houve ajuntamento de transeuntes à porta da botica.
O dono da casa, homem de bom natural,
que raro se envolvia nas conversas, aviando pachorrentamente lá dentro as
receitas enquanto cá fora se discutia com mais ou menor calor, o dono da casa
dessa vez saiu do sério e do almofariz, e veio dizer ao revolucionário que não
gritasse tanto.
É bem de ver que o homenzinho,
habituado a revoltar-se contras os governos de seu país, não suportaria que um
simples boticário lhe viesse dizer que não gritasse.
Gritou mais e mais, e tantas coisas
disse, que o dono da casa acabou por gritar também.
‒ Ponha-se
no olho da rua, sem patife! Bradou-lhe num tom que não admitia réplicas.
E, segurando o argentino pela
cintura, obrigou-o, com um empurrão, a dar um pulo até o meio da rua.
*****
No dia seguinte, o boticário foi
desafiado para um duelo. Entraram-lhe em casa dois sujeitos mandados pelo
argentino, que lhe pediram indicasse dois amigos com quem eles se entendessem
para regular as condições do encontro.
O boticário, sem levantar os olhos do
alambique, disse-lhes que sim, que as suas testemunhas lá iriam ter; mas desde
logo preveniu aos dois sujeitos, sendo ele o desafiado, cabia-lhe a escolha das
armas.
‒ O nosso comitente aceita qualquer
arma, pois todas maneja com igual perícia. Já teve quinze duelos no Rio da
Prata; matou sete adversário e feriu oito!
‒ Pois olhem, meus senhores – respondeu o boticário sempre às voltas com o
alambique – a mim não me há de matar nem mesmo ferir.
Nesse mesmo dia reuniram-se as quatro
testemunhas e acordaram que o duelo se realizaria na manhã seguinte, no Jardim
Botânico. O boticário forneceria as armas.
À hora convencionada achavam-se a
postos os adversários, os padrinhos e um médico levado pelo argentino.
‒ Então? As
armas?... perguntou este, olhando em volta de si.
‒ As armas cá estão – disse o
boticário, aproximando-se e tirando uma caixinha da algibeira do colete. –
Escolhi estas.
E, abrindo a
caixinha, mostrou duas pílulas.
‒ Pílulas! – exclamaram todos.
‒ Pílulas, sim. Este senhor é um
militar, um duelista que se gaba de ter matado sete homens, e que maneja
perfeitamente a espada, o sabre e a pistola; eu sou um pobre boticário, que não
tem feito outra coisa sem sua vida senão remédios. Se algum dia matei alguém,
fi-lo sem ter consciência disso... Cabia-me a escolha das armas: escolhi as
minhas...
‒ Mas isso
não é sério! – exclamou o revolucionário.
‒ É mais sério do que usted supõe;
uma destas pílulas tem dentro ácido prússico; a outra é inofensiva. Tiremo-la à
sorte, engulamo-la, e o que tiver escolhido a envenenada em poucos segundos
deixará pertencer ao número dos vivos.
E,
apresentando a caixinha ao adversário:
‒ Sirva-se.
‒ Nunca! Não
me presto a um duelo ridículo!
‒ Ridículo? Ora essa! Trata-se de um
duelo de morte, e eu não compreendo senão assim. Quando aqui vim, foi disposto
a morrer ou a matar. – Vamos, faça favor de escolher uma das pílulas!
O argentino estava lívido.
‒ Se usted não quer escolher, escolho
eu; mas se não é um covarde, tem que tomar a outra imediatamente, porque os
efeitos do ácido prússico são prontos!
E, tirando
um das pílulas, engoliu-a serenamente.
‒ Bom; já
engoli uma; vá! A outra! Depressa!...
‒ Ah! Não quer engolir a outra! Pois
engulo-a eu, porque são ambas de miolo de pão, e usted é uma maricas!
E engoliu a
outra pílula.
***
Nesse mesmo dia o argentino deixou o
Rio de Janeiro. Foi comer noutra parte o negro pão do exílio.
******
Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo,
nascido em São Luís
do Maranhão a 07 de julho de 1855, é uma das grandes figuras do humorismo
brasileiro. Foi jornalista, comediógrafo, contista e poeta. Em toda sua obra
campeia um fino e gracioso humorismo. Autor dos "Contos Possíveis",
"Contos Efêmeros", "Contos fora de moda", "Contos em
verso", "Contos Cariocas" e "Vida alheia", espalhou
também sua verve em dezenas de revistas teatrais e de esfuziantes comédias,
entre as quais sobressaem "O Dote", "A Almanjarra", "A
Véspera de Reis", "O Oráculo", "Vida e Morte",
"Entre a Missa e o Almoço", "Entre o Vermute e a Sopa",
"Retrato a Óleo" e "O amor por Anexins". Trabalhou nos
principais jornais da época, no Rio de Janeiro, tendo fundado e dirigido
"A Gazetinha", "Vida Moderna" e "O Álbum". Membro
fundador da Academia Brasileira de Letras, em que ocupou a cadeira n° 29, para
a qual tomou Martins Penna como patrono, faleceu no Rio de Janeiro a 22 de
outubro de 1908.
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