(Excerto)
José J. Veiga
Era um paletó de listras vivas,
estendido com outras roupas numa corda. Aritakê passou, viu o paletó, achou
bonito. Olhou a camisa do corpo, rasgada, sem cor: decidiu-se. Ninguém viu
Aritakê apanhar o paletó, mas muitos o viram andar pelas ruas com ele, parando
de vez em quando para levantar uma aba até a altura dos olhos (não podia baixar
a cabeça por causa da vasilha de água).
O dono do paletó, homem correto e
respeitador das leis, fez o que achou que devia fazer: levou o caso ao
delegado; mas fez questão de explicar que não era pelo valor da peça, era pelo
princípio; o paletó ele nem queria mais, não ia vestir roupa que andou em corpo
de índio.
Achando que o assunto era de
importância secundária o delegado entregou-o ao cabo do destacamento e partiu
num caminhão cheio de cachorros para uma caçada que ia durar dias. O cabo
gostou, havia muito tempo que não funcionava como autoridade.
Aritakê enchia um pote no chafariz
quando o cabo chegou com dois soldados armados de sabre, chegou e deu ordem
para agarrar e algemar. Aritakê deve ter pensado que eles o estavam
presenteando com alguma coisa, ficou olhando as duas pulseiras niqueladas e
sorrindo. Mas quando os soldados o puseram para diante a empurrões, aí ele não
entendeu e apontou o pote com as duas mãos. O cabo, homem experiente, não ia se
atrapalhar; resolveu o problema quebrando o pote com uma botinada, a água se
espalhando entre os cacos pela laje do chafariz.
De empurrão em empurrão, o cabo atrás
com os polegares no cinto explicando aos curiosos o motivo da prisão, Aritakê
foi jogado no calabouço, lugar reservado a presos perigosos. A porta foi
fechada com a chave enorme, Aritakê ficou no escuro.
Afora os empurrões, que ele não
entendeu, parece que Aritakê não se importou com a prisão. Sentado no parapeito
da janela, atrás dos barrotes de quase um palmo de largura reforçados com
chapas de ferro, ele passava o tempo entretido em olhar as listras do paletó,
prova do pouco caso que fazia da justiça.
Lá um dia o queixoso procurou o
delegado para saber em que pé andava o processo, o delegado disse que não
andava em pé nenhum, processo de índio é complicado, segue legislação especial,
ele não ia mexer em casa de marimbondo por um assunto tão trivial: bastava o
criminoso gramar uns tempos na cadeia para deixar o vício; depois, as famílias
todas estavam pedindo a liberdade de Aritakê, precisavam muito dele para
baldeação de água.
Os dias passavam iguais e sem sentido
mesmo para um índio, a comida chegando com atraso porque os meninos escalados
para levá-la não tinham pressa, o soldado que a recebia também não ia
interromper a história que estivesse contando ou ouvindo, e Aritakê curtindo fome
calado. De tempos em tempos um soldado chegava com uma lata d'água e despejava
no pote por cima do lodo antigo. Aos domingos os soldados levavam os presos
para despejarem o barril dos detritos e tomarem banho se quisessem. O povo
ficava olhando de longe, quem estivesse na janela se retirava por causa do mau
cheiro, ninguém aproveitava a ocasião para dar aos presos um pedaço de fumo,
uma peça de roupa, dinheiro; achavam que preso tem de tudo na cadeia.
Uma tarde de festa - procissão,
foguetes, banda de música - os soldados se descuidaram na vigilância, Aritakê
notou a porta do calabouço mal fechada, subiu os degraus de pedra como quem não
quer nada, empurrou a porta e foi saindo. Os soldados estavam discutindo sobre
armas de fogo em uma sala, do corredor se ouvia a conversa.
Aritakê não levou nada, não tinha o
que levar, nem sabia para onde ia. Desceu o largo, parou um pouco na porta da
igreja, não se interessou pela barulheira, continuou andando, passou a ponte e
foi acompanhando o rio. Já na estrada, passada a máquina de arroz e a cerca do
matadouro, ouviu tropel e gritos atrás.
‒ Pega o
preso! Vai fugindo!
Aritakê olhou
para trás, viu os soldados, entendeu que era com ele. O jeito agora era correr.
‒ Pega! É
preso fugido! Pega!
Sentado na porta de sua casinhola com
uma criança nos braços um homem ouviu o apelo. Depressa ele entregou a criança
a alguém lá dentro e tentou cercar o fugitivo. Aritakê quebrou cangalha fácil e
passou.
‒ Pega! Não
deixa fugir!
Tranquilamente o homem levou a mão à
cintura, puxou uma arma, atirou. No baque do tiro Aritakê perdeu o passo,
focinhou de lado e caiu de ombro na beira da estrada, uma perna adiante da
outra ainda na posição de correr.
Os soldados
já vinham chegando, elogiaram a pontaria.
‒ Vai atirar
bem assim na praia ‒ disse um.
O homem e os soldados foram ver o
efeito da bala, o homem ainda com a arma na mão - a queda podia ser truque de
índio treteiro.
Um soldado
virou o cadáver com o pé. A bala tinha entrado nas costas e saído no peito.
‒ Conheceu,
tapuio safado! ‒ disse o soldado.
O outro
estava interessado era na arma.
‒ É ximite, não é? Dá licença? ‒
examinou e completou, entendido: ‒ Logo vi. Bicho que não faz vergonha. Quer
negociar?
*****
Fonte: “Literatura
comentada” José J. Veiga,
Editora Abril, São Paulo: 1982 págs. 47/51.
Editora Abril, São Paulo: 1982 págs. 47/51.
José Veiga, conhecido como José
J. Veiga, (Corumbá de Goiás, 1915 – Rio de Janeiro, 1999) foi um escritor
brasileiro,
considerado um dos maiores autores em língua inglesa do realismo fantástico. A crítica política e
social em seus livros é eivada de lirismo, mas não por isso menos incisiva.
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