domingo, 19 de setembro de 2021

Faxina literária

Martha Medeiros*

O primeiro passo é providenciar a “sujeira”. Espalho frases de qualquer jeito, abuso dos pronomes possessivos, solto umas ideias mal alinhavadas. Que ninguém veja. Há um começo manco, um final precipitado, mas já se percebe o conteúdo, precisa apenas de uma boa faxina. É um texto, apenas mais um texto esparramado na tela em branco. Tem futuro, depois que começar a varredura pode dar certo, mas deixe pra amanhã, desligue o computador e vá dormir. 

No dia seguinte, mãos à obra. A página tem que ficar apresentável, estará diante dos olhos de muita gente, procure não passar vergonha. 

É a partir desse ponto que me animo, que gosto de ser aquela que escreve, sabendo que escrever não é só emendar uma palavra na outra. É limpar, suprimir, arrumar, desinfetar, reescrever uma, quatro, dez vezes, até abrir a porta ao prezado leitor e liberar o acesso, “pode entrar”. 

Aquele verbo, por exemplo. A frase ganhará outro ritmo se ele tiver três sílabas em vez de duas. Busque outro com o mesmo sentido e se possível a mesma terminação. 

A palavra medo não se aplica no segundo parágrafo, o assunto não é tão dramático, troque por receio, que fica mais suave, e fique atenta àquela rima ali no meio, a não ser que seja proposital, o leitor perdoa quando o autor poetiza a rotina. Vamos lá, não desanime, ainda há trabalho pela frente. 

Aquelas redundâncias perto do fim: dispense todas elas. 

Caramba, justo onde inseri uma piada? Cortá-la vai doer, a gente se apega, sabe? Será que posso transferi-la para outra parte do texto? Não, ela não serve, precisa ser eliminada. Lá por novembro você tenta de novo, hoje não é dia de gracinhas. Diga adeus, coragem. 

Retiro um “é preciso reconhecer que” para ir direto ao assunto, dou contundência a uma descrição, deleto quatro adjetivos poluentes e troco “até este exato momento” por algo mais enxuto: “por enquanto”, isso. Preciso me manter nas cercanias dos 2,3 mil caracteres ou comprometerei a diagramação da coluna. 

Passo a guilhotina nos advérbios, enxugo um excesso de palavras terminadas em “ão” e troco uma crítica explícita por uma ironia. Aparafuso uma palavra que estava frouxa, ajusto uma concordância equivocada e inverto a sequência de duas frases – hum, ficou melhor assim. Substituo uma expressão em inglês por sua versão em português, retiro umas aspas, altero um tempo verbal, reforço um ponto de vista, volto a colocar as aspas, leio tudo em voz alta e só então me indisponho com uma gíria que não se usa mais. Ah, tudo bem, ela fica. 

Terminou? Termina nunca. Sempre sobra uma gordurinha ou uma pontuação duvidosa, mas, paciência, uma hora é preciso dar o texto por encerrado, relaxe, ficou ajeitadinho, o público já pode entrar. 

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*Do caderno Donna de Zero Hora, setembro de 2021. 

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