sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O que causou a Revolta da Chibata

  

− O bandido apanhava uma corda mediana, de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço, das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho com o fim de aparecer, apenas, as pontas das agulhas. A guarnição formava e vinha o marinheiro faltoso algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia uma proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam nu da cintura no pé de carneiro, ferro que se prende à balaustrada do navio. E, então, Alípio, o mestre do trágico cerimonial, começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia carniceiramente o seu mister degradante. Os tambores, batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. Todos estavam em segundo uniforme, luvas e armados de suas espadas. A marinheirada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: 

– Isto vai acabar!

(Depoimento do marinheiro brasileiro Eurico Fogo, no final do século XIX, citado no livro “A Revolta da Chibata”, de Edmar Morel. 

A prática dos castigos corporais na marinha brasileira, nomeadamente o açoite, teria acabado em 1889, por força de um decreto publicado no segundo dia de vida da República brasileira. Mas a lei era uma coisa, e a realidade dos navios da Marinha brasileira era outra muito diferente: ignorando a lei, os oficiais continuaram a usar o castigo da chibata durante mais duas décadas a coberto do código de conduta da Marinha. 

Qualquer falta poderia ser pretexto, e ao abuso punitivo somava-se o sadismo dos comandantes, que ignoravam o limite máximo da antiga lei, de 25 chibatadas, e chegavam a multiplicá-las por dez. 

A marinha poderia ser republicana, mas a prática era medieval e possuía raízes profundas: “vinha dos tempos da escravidão”, argumentava o escritor Gastão Penalva, antigo oficial da Marinha. 

Um oficial branco para cada dez marinheiros negros 

A tripulação de um navio de guerra reproduzia quase caricaturalmente a sociedade brasileira: os oficiais vinham das classes nobres, da aristocracia rural ou da burguesia urbana; os postos inferiores eram preenchidos por voluntários, por homens vindos da Escola dos Aprendizes e, como estes não fossem suficientes, a Marinha usava o recrutamento forçado, muitas vezes feito à saída das prisões, para completar as tripulações. Assim, os navios de guerra brasileiros eram governados por oficiais brancos e aristocráticos que tinham de impor a sua autoridade sobre marinheiros quase todos eles negros ou mestiços, sendo de um para dez a proporção entre oficiais e postos inferiores. 

Para manterem a disciplina nos navios, o recurso aos “aviltantes castigos” era constante. O almirante Eduardo Wandenkolk, segundo o já citado Penalva, “não se pejava de dizer que, a seu juízo, mais valia a chibatada como castigo ao réu confesso, do que os maçantes e delongados conselhos de guerra.” Proibir a chibata, argumentavam os seus adeptos, era ameaçar a vida dos oficiais, já que “só com o temor do castigo é que podem ser contidos os marinheiros negros mal encarados.” 

Mas a ordem imposta pela violência e o medo, sem uma contrapartida de melhores condições de vida (os marinheiros recebiam pagamentos miseráveis e cumpriam ritmos de trabalho extenuantes) não podia ser duradoura. Além disso, depois de alistados, os marinheiros só podiam sair da Marinha ao fim de 15 anos. Isto é: aquele que era alistado à força sentia-se numa condição pior que a do preso. Resultado: multiplicavam-se as deserções e os atos de indisciplina. 

(Do blog Buala) 

P.S. O livro fundamental para saber mais sobre esse fato histórico, está na obra “A Revolta da Chibata”, de Edmar Morel, da Editora Paz e Terra.



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