quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Ser gaúcho

 Homenagem aos homens da campanha 

Texto de Juremir Machado da Silva*

Meu avô paterno era da Madureira (RS). Meu avô materno era da Florentina (RS). Meus pais viveram muitos anos em Palomas, onde crescemos. Esses lugares todos ficam no coração da campanha gaúcha, bordeando o Uruguai, de certo modo quase no fim, ou no começo, do Brasil. Meu avô materno olhava ao longe com a mão em concha acima dos olhos:

– Vem chuva da Banda Oriental – previa.

Meu avô paterno estendia a mão para os campos, como se tudo aquilo fosse um imenso quintal, e ensinava com sabedoria e sem pretensão:

– Tudo isso é dos gaúchos. Temos que cuidar.

Cresci nesses pagos vendo gaúchos de todos os tipos, a cavalo e a pé, de bombacha e de calça corrida, de campera e de poncho, vaqueano e maturrango, pachola e calavera (que por lá era jogador). Todos possuíam em comum a paixão pelas suas querências. Não tinham a menor dúvida sobre quem eram neste mundo de Deus: eram gaúchos. Amavam carreiras de cancha reta, jogo de truco, canha e carne assada. Em setembro, queriam desfilar para mostrar orgulho de ser gaúchos e cavalos bem domados e encilhados. 

Eu os vi no habitat que era o deles: o campo, a campanha, o lombo de cavalo, as coxilhas ondulando. Eu os vi também na periferia da cidade, gaúchos a pé, lembrando dos bons tempos, sovando cordas para matar o tempo e a saudade, contando histórias, lembrando domas, entreveros e tropeadas. Eram amigos, parentes, extraviados. Na campanha, eu era da cidade. Na cidade, eu era da campanha. Falava como eles, sentia como eles, repetia, nas situações difíceis, como meu avô materno: 

– Ovelha não é pra mato.

Mas eu já era outro. Tinha a partida na alma. Saí da campanha, que nunca saiu de mim e nunca saiu daqueles gaúchos que o êxodo obrigou a trocar a sombra dos arvoredos por, muitas vezes, alguma árvore solitária no “povo”. Havia o gaúcho que comia num tacho, o que esculpia igrejas em pedra-sabão, o que conversava com os cavalos, o que passava os dias acocorado no canto do rancho, o que passeava garboso no seu cavalo, o ginete, o tropeiro, o cantador. Era um mundo à parte no mundo de todos.

– Não aperta muito, Mirinho.

Era o meu avô materno ensinando a ter calma. Quando a primavera desponta no horizonte, eu penso nos gaúchos da minha infância e sinto um aperto no coração. A isso, segundo li num livro antigo, é que se chama de saudade, uma tristeza suave que se quer sentir em alguns momentos. Nem todos queriam ser centauros. Alguns nem montavam mais a cavalo. Todos sentiam que se alimentavam de uma seiva extraída daquela terra verdejante. O passado que os unia era feito de imagens transmitidas de geração em geração, de lendas, de oralidade. O presente que os ligava era feito de lides, de usos e costumes, de um jeito típico de ser.

Então me vem essa nostalgia da campanha, que nem chamávamos de pampa, essa vontade de subir pela correnteza, nadando contra o tempo, para abraçar de novo, como diz uma bela canção, “as fontes do meu passado”. Mais do que nostalgia é uma homenagem aos gaúchos de bota, alpargata e até de pés no chão que eu vi fazendo o Rio Grande existir.

(No Correio do Povo, setembro de 2021)


Obs.: Fronteira seca entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Assinalado, o ponto onde ficam as cidades de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai) duas cidades grudadas uma na outra.

Abaixo, à esquerda, a cidade gaúcha de Santana do Livramento e, à direita, a cidade uruguaia de Rivera. O meio da Praça Internacional divide as duas cidades e os dois países, que vivem irmanados em plena paz e harmonia.


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