sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Por duas garrafas de cachaça

 Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1910.

Cena tirada do hq Chibata! (Foto: Reprodução/ Editora Conrad) 

Mãos grandes e braços compridos. Todo o corpo coberto por uma penugem loura, asquerosa, que lembrava aos marinheiros os pelos púbios das velhas prostitutas polacas. Mas ninguém dizia nada. Os músculos de ferro de Alípio afastavam o olhar até dos mais valentes. Chibateiro, assassino, filho da puta eram palavras aprisionadas na cabeça de todos. Prisão perpétua. Embora Alípio fosse um marinheiro comum, ninguém o fitava nos olhos. Eram proibidos, como no tempo da escravatura, de manter a cabeça erguida diante de seus superiores. Essa atitude dava a Alípio galões de oficial. E ele olhava direto nos olhos de toda a tripulação do navio. Até do comandante. 

Alípio sacudiu a cabeça, contrariado. De todos, não. Havia aquele negro, João Cândido, que olhava sempre dentro dos seus olhos. Um olhar sem ódio, mas que grudava nele pelo resto do dia. Duas moscas varejeiras que voavam e tornavam a pousar. Além disso, aquele urubu nojento era a única pessoa mais alta do que ele no navio. 

O carrasco afastou o negro agigantado de seus pensamentos e tentou sorrir, num esgar de dentes brancos, quase perfeitos. Ele era o chibateiro do Minas Gerais, um dos três navios de guerra mais poderosos do mundo. Gêmeo do São Paulo, o outro encouraçado comprado da Inglaterra a peso de ouro. Os dois juntos poderiam derrotar, sozinhos, um país inteiro. Somente os ingleses possuíam um navio igual, um único, mas na marinha deles não havia mais castigos físicos há muitos anos. Por isso, Alípio e Luís Apicuim, o carrasco do São Paulo, eram os chibateiros mais poderosos do mundo. 

Alípio possuía até uma cabine para seu próprio uso. Um cubículo que o protegia de amanhecer com uma faca enterrada nas costas. Ali, naquela noite quente, nu da cintura para cima, cumpria um ritual que o enchia de legítima emoção. Estava preparando uma chibata nova para ser usada no dia seguinte, logo depois do nascer do sol. 

Com gestos lentos, tirou do baú um cabo de linho da grossura do seu polegar e mediu duas braças e meia. Sacou do bolso uma navalha, abriu-a e cortou a corda com um único talho. Colocou o pedaço menor dentro de um balde com água e guardou o resto no baú. Pronto. Agora teria de esperar uma hora até a faina seguinte, a mais importante para preparar uma boa chibata. 

O homenzarrão suspirou, fungou duas vezes e escarrou no piso de aço. O que faria para matar o tempo? Vendo que ainda estava com a navalha na mão, deu dois passos até o fundo do cubículo. Tinha ali um tripé com uma bacia e um jarro com água meio podre. Pegou uma velha caixa de charutos que estava no apoio do tripé e tirou de dentro dela o espelho pequeno, o afiador de couro, o pincel de crina e um naco de sabão. Sentou-se na beira do catre e começou a passar a lâmina da navalha no afiador. Com o movimento ritmado, uma estranha luz foi-lhe clareando as ideias. Uma luz branca, como a do lampião novo que a mãe usava no seu casebre, lá nos confins de Niterói. Se ele perdesse o emprego de chibateiro, como iria botar comida dentro daquela casa? Quem iria cuidar da velha e das suas três irmãs solteiras? 

Alípio contraiu os maxilares. Sabia dos rumores que circulavam entre os quinhentos marinheiros do Minas Gerais e de outros navios fundeados na Baía da Guanabara. Uma negrada assassina que só podia ser domada a relho. O que fariam eles se a Marinha acabasse com a chibata? Iriam cair de bêbados e dormir pelo convés. Iriam pegar à força os grumetes até na frente dos oficiais. Impossível manter aquela corja na linha sem o medo que tinham de morrer apanhando. 

A navalha devia estar no ponto. Experimentou-a cortando uma calosidade do dedo indicador. Melhor que fosse o pescoço do negro João Cândido, aquele urubu com jeito de Por duas garrafas de cachaça 21 manso, mas que era o pior de todos. Ele não perde por esperar. Dizem que nunca apanhou de chibata. Melhor assim. Eu ainda vou ser o primeiro a lanhar aquelas costas largas. 

Alípio aproximou o rosto do espelho apoiado numa reentrância da parede de aço. Cabelo louro agrisalhado, duro, cortado curto, nascendo a três dedos das sobrancelhas cerradas. Nesse mínimo espaço da testa, nenhuma ruga na pele branca e sardenta. Olhos verdes, muito grandes, parecendo sempre arregalados. Nariz quebrado, lembrança de algumas lutas de boxe, lá longe, na adolescência. Boca quase sem lábios, queixo quadrado e forte. Pouco a pouco, foi cobrindo o rosto com a espuma que fazia brotar girando o pincel dentro de um caneco. 

Alguns minutos depois, com o rosto barbeado, sentiu-se bem para preparar a sua nova chibata. Uma técnica herdada de diversas gerações de chibateiros da Marinha de Guerra. Engoliu em seco, antegozando o momento em que ouviria o ruflar dos tambores. O momento tão esperado em que ergueria a chibata para dar o primeiro golpe. Como seria o marinheiro pendurado ali diante dele, com as costas nuas contraídas, à espera do castigo? Um covarde que começaria a urrar e a urinar desde as primeiras chibatadas? Um esperto que fingiria desmaiar? Um valente que sofreria calado, mordendo os lábios até brotar sangue? 

Alípio sentiu a pele do rosto ardendo e lembrou-se de que não tinha álcool para passar. Pensou um pouco e foi remexer outra vez no interior do baú. Tirou dele duas garrafas de cachaça que ganhara de presente naquela tarde. As mesmas que o marinheiro Marcelino trouxera para bordo do encouraçado, prometendo uma para o maior puxa-saco dos oficiais. 

Baiano burro. O cabo Valdemar o delatou na hora e Marcelino foi preso e amarrado pelos pés numa argola de ferro do tombadilho. O comandante diz que não gosta da chibata, mas aqueles olhinhos de porco e o bigode atravessado na cara como uma cobra nunca me enganaram. Mandou o tenente dele me chamar e encomendar o castigo para amanhã cedo. Vou abrir esta garrafa de uma vez. E com os dentes, para me dar sorte. 

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Do livro “João Cândido, o Almirante Negro”, de Alcy Cheuiche, da Editora L&PM Editores.


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