segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Mario Quintana

Histórias e Memórias 

J.H. Dacanal* 

Mario Quintana em foto de Dulce Helfer 

(...) 

De poucas palavras e um tanto ranzinza, seu Mario − como todos o chamavam − passava o tempo sentado em sua mesa na Redação, rabiscando suas coisas, entre as quais certamente Do Caderno H, sua coluna semanal de epigramas. Pelo que sei, não tinha outras obrigações. Mas era assíduo frequentador do bar da Empresa, no terceiro andar, do lado oposto aos estúdios da Rádio Guaíba. E pelo final da tarde lá estava ele com seu lanche de indefectível: café preto, quindim e cigarro. 

No bar, ao contrário do que ocorria na Redação, ele falava bastante. Era ali que, às vezes, ficávamos conversando. Principalmente depois da criação do caderno de Sábado, do qual passei a ser colaborador assíduo com artigos sobre literatura e cinema. Seu Mario não era fácil. Irônico, sarcástico e − quando se irritava − um tanto debochado, tinha tiradas geniais. Como nunca tive vocação para ser um Boswell ou um Max Brod, eu apenas ouvia. E nunca as anotei. É tarde para lamentar. Mas me lembro de umas ou duas. 

Ele me chamava de guri. Um dia ele chega, senta a meu lado e me pergunta à queima-roupa: 

− Guri, qual é o texto mais erótico de toda a literatura ocidental? 

Eu disse que não sabia. E ele: 

− Você conhece o episódio de Paolo e Francesca, da “Divina Comédia”? Pois é, lá Francesca, relatando a Dante seu encontro com seu amante, diz assim: 

“La boca mi bacciò tutto tremante.

Quel giorno più non vi leggemo avante”. 

− Entendeu, guri? Dante não descreve nada. E deixa que o leitor possa imaginar tudo! Um dia inteiro, guri! 

Por aquela época, seu Mario já era famoso em Porto Alegre. E de vez em quando a Redação era invadida por bandos der crianças e adolescentes barulhentos, liderados por uma ou duas professoras, que vinham conhecer o poeta. 

Um dia − sempre no bar! − seu Mario chega e me diz: 

− Imagina, guri, hoje me perguntaram por que eu nunca tinha me casado! 

E eu, como sempre quieto. E ele continua, mais ou menos assim: 

− Aí eu contei. Não é que eu não quisesse. Quando eu trabalhava nos Correios eu tinha uma namorada, colega de trabalho. Mas um dia o chefe trocou nossos horários. E a gente nunca mais se encontrou... 

E ria. Com aquele olhar irônico de sempre! Realmente, seu Mario era uma figura... 

Em outra ocasião, lá estava eu comendo o meu farroupilha (sanduíche de pão, presunto e queijo) de janta quando ele chegou e senta a meu lado. E começamos a conversar. Não lembro o motivo, mas em certo momento ele se irritou e me tratou um tanto rispidamente. Eu, querendo acalmá-lo, disse, respeitosamente: 

− Mas o que é isso, Seu Mario?! Nós somos amigos! 

E ele, mortal: 

− Não, nós não somos amigos! A amizade pressupõe uma série de experiências comuns. E nós não temos nada disso! 

E se levantou da banqueta, irritado, e foi embora. E eu fiquei lá, depois de aprender uma das grandes lições de minha vida, que nunca mais esqueci. No dia seguinte, é claro, a irritação desaparecera. Seu Mario era assim. 

(...) 

******* 

*Jornalista, escritor e professor. Editor de Internacional do Correio do Povo nos anos de 1960 a 70. Graduado em Letras Clássicas e Vernáculos e em Ciências Econômicas. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. Autor de “Para Ler o Ocidente” (Besouro Box)


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