segunda-feira, 30 de julho de 2018

Conselhos de Martin Fierro

Canto XXXII do imortal poema de José Hernandez)
Tradução de J. O. Nogueira Leiria


Todo pai que dá conselhos
é mais que pai – um amigo:
como tal , assim lhes digo que
que vivam com preocupação:
- ninguém sabe em que rincão
se oculta seu inimigo.

Eu nunca tive outra escola
que uma vida desgraçada;
desculpem se na jogada
alguma vez me equivoco,
pois deve saber mui pouco
quem não pôde aprender nada.

Há homens cuja cabeça
só de saber se povoa;
aos sábios ergam-se loas,
mas isto devo dizer:
melhor que o muito saber
é aprender coisas boas.

Não aproveitam trabalhos
se não nos ensinam nada;
o homem, de uma mirada,
tudo há de ver num momento:
seu melhor conhecimento
é conhecer quando enfada.

A esperança não deleguem
ao alheio coração;
e, na maior aflição,
confiem no Onipotente;
entre os homens, num somente;
em dois, só com precaução.

As faltas não têm limites,
tais como os têm os terrenos;
existem nos mais serenos,
e, assim, vale este preceito;
- quem quer que tenha defeito,
desculpe os outros ao menos.

Jamais a quem seja amigo
deixem ficar na estacada;
porém não lhe peçam nada,
nem esperem dele tudo:
amigo fiel, sobretudo,
é uma conduta honrada.

O medo nem a cobiça
será bom que nos assaltem;
assim, não se sobressaltem
pelos bens que lhes perecem:
aos ricos não se ofereçam
e aos pobres jamais lhes faltem.

Passa bem até entre os pampas
quem guarda respeito à gente;
há de o homem ser prudente
para livra-se de arrochos:
cauteloso frente aos frouxos,
moderado entre valentes.

O trabalho é uma lei
a quem tem de adquirir;
não se exponham a curtir
uma triste situação:
sangra muito o coração
de quem tenha que pedir.

Deve o homem trabalhar
se quiser viver ufano;
a desgraça só traz dano
e persegue de mil modos:
chama na porta de todos
e entra só no do haragano.

Na provoquem outro homem,
porque ninguém se acovarda:
conhecê-lo pouco tarda
quem ameaça imprudente,
- sempre há um perigo presente
e outro perigo que aguarda.

Para vencer um perigo,
qualquer abismo salvar,
eu posso lhes afirmar:
melhor que o saber e a lança
sói servir a confiança
que o homem em si guardar.
..............................
..............................

Se o coração entregarem
a alguma mulher querida,
não façam nunca partida
que a ela possa ofender:
sempre os há de perder
uma mulher ofendida.

Se são cantores, procurem
só cantar com sentimento;
não firam nunca o instrumento
só por gosto de falar,
e acostumem-se a cantar
só coisas de fundamento.

E lhes dou estes conselhos,
que custei pra adquirir,
porque os quero dirigir;
porém não vai minha ciência
até lhes dar a prudência
que é preciso pra os seguir.

Estas coisa e outras muitas
meditei nas soledades;
não se encontram falsidades,
nem erros nestes conselhos:
sempre da boca dos velhos
é que brotam as verdades.

Nota: J. O. Nogueira Leiria traduziu, integralmente, o imortal poema de José Hernandez – “Martin Fierro” -, de que damos o excerto acima.

“La bíblia gaúcha”, como os compatriotas de Hernandez chamam a esse monumento das letras americanas, tem, agora, sua versão portuguesa, como já se fez para tantas outras línguas faladas em todos os cantos do mundo.

“Ele anda sempre fugindo. Sempre pobre e perseguido; não tem cova nem ninho como se fora um maldito, porque ser gaúcho... ser gaúcho é delito.” José Hernández - Martín Fierro, 1872.

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