quinta-feira, 17 de junho de 2021

A Rita e a desilusão amorosa

 

Precisamos falar sobre “a Rita” de Chico Buarque 

Por Michelle Oliveratto 

Uma introdução de samba triste é que antecede os versos que, com uma voz chorosa, Chico Buarque canta sobre o desamor de Rita. 

Ele fala sobre angústia e a dor de ser abandonado. Sobre a rejeição amorosa de uma mulher que, ao partir, levou com ela tudo que possa representar vida. E não é muito difícil se identificar com os sentimentos narrados na canção. Não é preciso viver um “grande” amor, daqueles que acontecem apenas nas canções de Chico Buarque ou nas histórias de Shakespeare. Nas paixões, também, é possível experimentar essas sensações de intensidade, onde o fim se assemelha com a beira do abismo. De modo que redenção para toda dor se encontra no horizonte, inatingível, quanto mais caminha para sua direção, mais distante ela fica. 

Então, essa angústia descrita no samba já foi experimentada pela grande maioria das pessoas, fazendo com que deixemos de ser meros ouvintes da canção para nos tornar solidários à dor do personagem abandonado por Rita. Pois, trata-se de uma dor sentida em nossa pele. Isso nos aproxima da canção, do compositor e, até mesmo, de Rita que, no caso, torna-se mero vocativo para tantas outras personagens da vida real que dilaceram os corações, e transformam a vida de quem as amam em um samba triste. 

Na música, é narrada a frieza com que a amada, além de arrancar do peito quem outrora tanto amou, também leva consigo seu retrato, seu trapo, seu prato, uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel. Afastando qualquer possibilidade de volta. Aparentando até mesmo uma fuga. 

Na segunda estrofe, o sujeito abandonado cogita a possibilidade que a atitude da amada, tenha sido de má fé. Levantando a suspeita que ela tenha matado o amor por vingança. Que embora não tenha levado nada de valor, causou perdas emocionais ditas como irreparáveis. Como a juventude, esperança de futuro e um coração dilacerado. Inspiração já não havia mais. Sem motivo para canção, o violão se calou. 

Chico Buarque retrata o sentimento de luto ocasionado pela morte de um amor, através do ponto de vista de quem foi abandonado. Mas não podemos deixar de olhar por uma outra perspectiva, que vai além de tentar ouvir a versão de Rita da história, mas analisar o contexto político que o Brasil vivia na época que o disco, que leva o nome do artista, foi lançado em 1965. 

Brasil se encontrava em plena ditadura militar, onde os artistas eram perseguidos e censurados. Criticas ao governo era inadmissível. Tudo era controlado. Mas para driblar a censura, compositores, escritores e toda classe intelectual, usava de algumas artimanhas para camuflar e poder expressar todo o descontentamento com o cenário político de uma forma indireta. 

Será que a música “A Rita” não seria um protesto camuflado de desilusão amorosa? 

Quando Chico Buarque com seu canto triste entoa os versos: “A Rita levou meu sorriso, no sorriso dela meu assunto, levou junto com ela o que me é de direito”. 

Ausência do sorriso, passa justamente a ideia de descontentamento de uma sociedade movida pelo medo, de uma classe perseguida e torturada, caso fugisse das regras impostas por militares, que por sua vez, fiscalizava absolutamente tudo, obras literárias, canções e ficavam atentos, inclusive, nas conversas triviais. Como consta no verso que relata que além do sorriso, levará também o “assunto” e “o que me é de direito” transmitindo a ideia da liberdade de expressão que foi negada. 

“Levou seu retrato, seu trapo, seu prato, que papel! Uma imagem de São Francisco e, um bom disco de Noel (...). Não levou um tostão, porque não tinha não, mas causou perdas e danos. Levou os meus planos, meus pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração. E além de tudo, Me deixou mudo Um violão”. 

Nesse trecho, é possível notar evidências da postura militar que, ao encontrar indícios de algo que considerava uma ameaça, ou que iria contra as regras impostas, era confiscado e apreendido. Gerando perdas imensuráveis, como uma sociedade coagida, torturada, exilada, reprimida. O maior reflexo de uma sociedade é a arte que ela produz, e a mesma não tinha liberdade para ser criada. Jovens que lutavam por direitos, pagaram com a própria vida, teve o silêncio forçado, assim como os violões dos artistas que eram impedidos de cantar os lamentos causados por essa crueldade. 

O título da canção “A Rita” caracterizada por uma figura feminina, fria, calculista, impetuosa e egoísta. Pode ser também associada, por outra figura feminina cujas características são as mesmas e, que se intitula “A ditadura”. 

Tudo depende da forma que olhamos. As palavras têm o poder de arquitetar labirintos imensuráveis. Atrás do silêncio, pode se esconder um discurso de salvação. Um samba triste pode ser um pedido de socorro. A história de amor, cujo homem é abandonado, pode dizer muito mais do que uma desilusão amorosa, pode ser um grito no escuro de uma sociedade amordaçada pela tirania militar. 

(Do blog Obvious) 

A Rita levou meu sorriso,

No sorriso dela,

Meu assunto.

Levou junto com ela

O que me é de direito

E arrancou-me do peito

E tem mais...

Levou seu retrato, seu trapo, seu prato,

Que papel!

Uma imagem de São Francisco

E um bom disco de Noel. 

A Rita matou nosso amor de vingança,

Nem herança deixou.

Não levou um tostão,

Porque não tinha não,

Mas causou perdas e danos. 

Levou os meus planos,

Meus pobres enganos,

Os meus vinte anos,

O meu coração.

E além de tudo

Me deixou mudo

Um violão.



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