domingo, 27 de junho de 2021

Efeito colateral do absurdo

 

Martha Medeiros  

Ele telefonou de manhã cedo e me assustei: ué, só trocamos WhatsApps. Telefonemas estavam reservados para os aniversários ou para alguma tragédia pessoal. Como não era meu aniversário, me preparei para o pior. Alô. 

Ele estava arrasado, havia rompido uma relação. Não com a namorada, nem com o filho. Na noite anterior, discutiu feio com um grande amigo e se desentenderam de vez, o passado em comum não conseguiu evitar o fim. Nunca imaginou que chegaria a esse ponto por causa de política. “Não sou nenhum radical, você sabe” – começou me dizendo – “mas cheguei no meu limite. Desde moleques, éramos dois idealistas, comíamos e bebíamos livros, lutávamos contra o moralismo, viajávamos de carona pelo Brasil conhecendo praias lindas e cidades miseráveis, vimos a condição precária de tanta gente. As cenas chocantes de tortura que assistíamos em filmes nos revoltavam, queríamos mudar o mundo! Inocentes, claro, mas o valor que dávamos à justiça, à vida e à igualdade era inegociável. E, supunha eu, vitalício. Agora, de cabelo branco, ele grita “mito, mito!” para um sujeito que baba ovo pra ditadura e pra torturador, e que está nos levando a um retrocesso desmoralizante. Não foi um voto em oposição ao PT, essa desculpa já caducou. Ele realmente se identifica com o cara, Martha. Como continuar conversando sobre futebol como se nada tivesse mudado? 

Fui a escolhida para o desabafo porque, semanas antes, havia comentado que, apesar do abismo aberto no país em 2018, eu ainda acreditava que as amizades formadoras, aquelas que se cristalizaram na infância e adolescência, não deveriam ser desfeitas pela polarização. Manter o laço com quem nos viu crescer e que repartiu vivências muito íntimas é uma espécie de seguro-emocional. Amizade verdadeira é um alicerce, uma maravilha do mundo antigo, quase um marco zero existencial. 

Até agora, por sorte, não tive um embate violento e definitivo com ninguém que fosse especial para mim. Nas redes é outro papo, as pessoas se exaltam e, se o vínculo é fraco ou inexistente, tchau e bênção. Mas é muito doloroso colidir com um amigo querido que ainda acredita que a crise é entre esquerda e direita, que se posiciona como se houvesse dois extremos em disputa, quando não há. Nossos políticos podem ser malandros, safados, frustrantes ou coisa pior, mas atuam na mesma arena democrática, são todos discutíveis. O obscurantismo é indiscutível. Alternativa suicida. 

Era mesmo uma tragédia pessoal: meu amigo ligou para falar sobre a morte do afeto, fulminado pela glorificação do absurdo. Minha defesa pela manutenção dos laços entre pessoas discordantes não surtiu efeito dessa vez. Ele perdeu um irmão em vida, o que é sempre triste. Para atenuar, combinamos de reduzir a troca de WhatsApps e nos telefonarmos mais. 

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(No Caderno Donna de Zero Hora, junho de 2021)

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