terça-feira, 8 de junho de 2021

O apontador de lápis alemão

 

Por David Coimbra* 

Um dia, minha mãe chegou e anunciou: 

− Tenho um presente pra ti! 

E tirou da bolsa um objeto pequeno e prateado, que ela segurava entre o indicador e o polegar. Eu estava sentado no tapete da sala, brincando com o forte apache. Levantei-me para ver o que era. 

− É um apontador de lápis alemão! − explicou ela. − O melhor apontador de lápis do mundo! Não tem nada igual! Nada! 

Tomei o apontador nas mãos. Era pesado e sólido. Parecia resistente, como todas as coisas feitas pelos alemães. Agradeci à mãe e, em seguida, corri para a minha pasta, de onde tirei um lápis a fim de experimentar o apontador. O lápis se encaixou nele à perfeição, como se tivessem sido fabricados ao mesmo tempo. Ao girá-lo, a lâmina começou a descascar fácil e suavemente a madeira, extraindo uma única tira finíssima sem nenhuma dificuldade. Olhei para o lápis apontado: liso, pontiagudo, sem lascas. 

− Que apontador! − disse para mim mesmo. − O melhor apontador do mundo! 

Fiquei orgulhoso do meu apontador, mas pensei: nem sou um aluno tão bom assim para possuir essa máquina. 

Na manhã seguinte, na aula, acomodei-me à minha carteira e coloquei o apontador sobre a mesa, ao lado do lápis e do caderno. Olhava para ele de vez em quando e pensava: “Nem mereço...” 

A aula foi em frente e, por volta de, sei lá, umas nove horas, senti um toque no ombro. Virei-me para o lado. Era Maria Cristina. Ela sorria com seus dentes muito brancos, que contrastavam com sua morenice e com seus olhos e cabelos negros, e aquela visão fez a sala de aula se iluminar. Ela falou, com sua voz de sorvete de creme: 

− Me empresta teu apontador? 

Fiquei feliz com o pedido. O apontador de lápis alemão estava me trazendo sorte. Porque eu amava Maria Cristina. Sério. Ela foi minha colega do jardim de infância à sétima série e, durante todos esses anos, eu dizia que era minha namorada. Não lembro se ela sabia desse relacionamento, mas acho que sim. Havia certo sentimento dela em relação a mim, por Deus que havia. Aí, na oitava série, Maria Cristina se mudou de bairro e de colégio. Fiquei desolado. Descobri que ela morava no edifício amarelo na Assis Brasil, perto do Cristo Redentor e, às tardes, caminhava até lá e parava do outro lado da rua, esperando que ela aparecesse. Ela nunca apareceu. 

Mas isso aconteceria depois. Agora, Maria Cristina ainda era minha colega e eu ainda a amava e ela pedia meu apontador de lápis alemão emprestado. Emprestei com alegria e, com maior alegria ainda, observei como ela apontava com graças os seus lápis. Só que aí ocorreu algo. Ou, melhor, não ocorreu algo: Maria Cristina não me devolveu o apontador de lápis alemão. E então começou meu drama. 

(...) 

Estávamos ainda no início da manhã. Ela apontou seu lápis e, depois, distraidamente, deitou meu apontador em sua própria carteira. Fiquei olhando. Tive vontade de pedir que ela devolvesse, mas não podia fazer isso. Maria Cristina ia pensar que sou mesquinho, ou que estava desconfiando de que ela ia me roubar o apontador, ou que não confiava nela. Sei lá. Não podia pedir. Será que ela tinha mais lápis a apontar e por isso deixou-o ali? Não era possível − ela havia apontado muitos lápis. 

Estava inquieto com a situação. Nem conseguia prestar atenção ao que a professora falava. A aula ia avançando e eu pensando no meu apontador de lápis alemão Não podia deixá-lo com Maria Cristina. Minha mãe ficaria decepcionada. Ela me dera o presente com tanta alegria... Não, não, eu precisava pegar meu apontador de volta. Mas como? 

A hora do recreio chegou. Enquanto a sineta batia, Maria Cristina jogou o material que estava sobre a mesa dentro da sua pasta, inclusive o apontador de lápis alemão. 

Oh, Deus! 

Pensei em sondá-la de alguma maneira, cercar o assunto, mas ela estava com pressa. Saiu correndo em direção a duas amigas, e as três se foram pelo pátio afora. Restei sozinho na sala de aula. Olhava para a pastinha dela e cogitava: “Devo abri-la e pegar de lá o meu apontador de lápis alemão?” 

Imaginei-me fazendo isso e Maria Cristina voltando de surpresa, ou a professora, ou qualquer aluno. Fosse quem fosse, a pessoa, ao me flagrar mexendo nas coisas dela, gritaria: 

− Ladrão! Ladrão! 

Minha honra seria manchada. Não podia arriscar. Saí para o pátio, desolado, tentando imaginar uma forma de reaver meu apontador de lápis alemão. Bem que eu pensara que não o merecia. Estava provado, devido à minha negligência − não o merecia mesmo. 

O recreio terminou e voltamos todos à sala de aula. Nos acomodamos. Maria Cristina me lançou um sorriso ensolarado quando se instalou na cadeira. Em seguida, pegou a pasta dela tirou o material para continuar o dia. Tirou o caderno, tirou os lápis, tirou a borracha. Mas não tirou meu apontador de lápis alemão. Ou seja: ela ia levá-lo para casa. Não podia deixar que isso acontecesse, minha mãe perguntaria pelo apontador, eu sabia disso. 

Passei o período seguinte da aula espremendo meu humilde cérebro em busca de uma saída. A manhã chegava ao fim e eu suspirava: perdi meu apontador de lápis alemão... Neste momento, tive uma inspiração. Tomei dois dos meus lápis e, disfarçadamente, pressionei suas pontas contra o tampo da mesa, quebrando-as. Um segundo depois, bati no ombro de Maria Cristina e os mostrei: 

− Me empresta o apontador? 

Ela bateu na testa: 

− O teu apontador! Eu fiquei com ele! − e vasculhou sua pasta e de lá tirou meu lindo apontador de lápis alemão e, sorrindo, miou: − Desculpa... 

Sorri de volta e, no absoluto improviso, rebati: 

− Imagina... Eu gosto que tu tenha alguma coisa minha. 

Ela, o chantili escorrendo da voz: 

− Por quê? 

− Porque aí, em casa, tu vai te lembrar de mim. 

Ela sorriu de contentamento e seus olhos negros reluziram e ela me passou o apontador de lápis alemão e, juro, a mão dela ficou um segundo a mais em contato com a minha. 

Sorri para ela e sorri para mim, eu sorria por dentro, sorria com o corpo inteiro e alma também; Apertei o apontador com força e pensei, feliz: eu mereço o apontador de lápis alemão. 

***** 

*(No jornal Zero Hora, em 7 e 8 de junho de 2021) 

Um comentário:

  1. Que pena que essa pureza, com o passar do tempo, fica só na lembrança.

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