sábado, 23 de outubro de 2021

Descartes

 

Texto e foto: Alina Souza 

O velho que antes era novo e, bem antes, não passava de um desejo de novidade. Angústia constantemente renovada. Hoje as coisas envelhecem mais rápido ou somos nós que nos cansamos delas de um dia para o outro? As propagandas trazem o desejo de recomeço, a sede de conquistar o zero quilômetro. Então partimos em frente, descartamos o que parece não ter mais conserto. Formamos montanhas de descartes. Não toleramos as falhas, os pequenos arranhões, os ruídos diferentes, os sintomas de desgaste, o cansaço. Evitamos o reparo. Cancelamos, excluímos tudo aquilo que nos incomoda. Optamos pela troca. Temos medo dos sinais do tempo. Não só medo, como também fuga, negação. Então jogamos o passado em um terreno baldio, longe da dolorosa análise, longe das vistas e das críticas. Deliciamo-nos com as ofertas, as promessas de uma vida mais moderna. O deleite dura alguns instantes ‒ poderosos e frágeis instantes ‒ até que a realidade testa a consistência e, na ausência da história e da memória, tudo mais uma vez desaba. 

(No Correio do Povo, outubro de 2021)

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