domingo, 31 de outubro de 2021

Sua estupidez, Brasil

 Martha Medeiros

Desenho de Gilmar Fraga / Agência RBS 

Meu bem, meu bem, você tem que acreditar em mim... 

Estou apelando para Roberto Carlos, quem sabe ele me ajuda a dar uma cantada nessa pátria borocoxô. A pandemia nos entortou. Ninguém imaginaria que um ciclone viral se atravessaria na nossa história, nos atingindo a caminho do altar, da formatura, do aeroporto. De repente, tudo mudou. Adeus, liberdade para sair de casa a qualquer hora, abraçar desconhecidos, dividir o mesmo balcão do bar. Logo nós, célebres pela camaradagem e irreverência, viramos ursos hibernando no inverno e no verão, grudados 24 horas nas redes sociais. Teve que ser assim, mas agora, vacinados e retomando aos poucos a vida que a gente tinha, começamos a olhar para os lados e a contabilizar o estrago, como sobreviventes que saem lentamente de um bunker. Todo mundo perdeu alguém ou alguma coisa, quem é que venceu? A estupidez. 

“Ninguém pode destruir assim um grande amor...” 

Mas aconteceu. Mesmo sendo uma nação fragmentada pela desigualdade social, o bom trato nos unia: ser afável não era a exceção, e sim a regra. Havia oposições, discordâncias, mas a bandeira do país era de todos. Torcidas brigavam, às vezes a flauta passava do ponto, mas não havia esse climão, essa brutalidade que não é espontânea, e sim estimulada. 

“Não dê ouvidos à maldade alheia, e creia...” 

A despeito de tantos problemas, o alto-astral era nosso cartão de visitas, lembra? Chegava a ser difícil explicar como havia tanta gente risonha em meio a tanta carência, mas era fato: o ar não pesava. Mesmo na corda bamba, matando um leão por dia, todo brasileiro tinha no DNA o gene da bossa. Terra de gente divertida, de explosão de ritmos, de erotismo sem culpa. Sempre fui muito crítica ao país, mas nunca desdenhei da nossa alegria, da nossa extraordinária natureza e da nossa arte, três grandes motivos de orgulho. E que agora estão aí, desbotados, minguando. 

“Quantas vezes eu tentei falar, que no mundo não há mais lugar, pra quem toma decisões na vida, sem pensar...” 

Minha voz é apenas mais uma entre diversos brasileiros que estão todos os dias escrevendo, debatendo, postando notícias com fonte segura, refletindo com seriedade sobre o país, trazendo à tona nossa história e ancestralidade, valorizando mais do que nunca o conhecimento, as pesquisas científicas e as crenças espirituais voltadas para o acolhimento sem exclusão. O material da casa é farto e está à disposição de quem deseja se aprofundar, enquanto o mundo, lá fora, observa espantado esse Brasil que em tão pouco tempo trocou o violão pelo fuzil, a simpatia pelo desaforo. 

“Sua estupidez não lhe deixa ver...” 

Que ainda te amamos, Brasil, ou não estaríamos insistindo tanto para você acordar desse pesadelo e voltar à sua luminosidade original. 

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(Em Zero Hora, outubro de 2021) 

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