domingo, 17 de dezembro de 2023

A sabedoria da costureira

 Arremate

 

A mãe, costureira profissional, passava o dia inteiro à máquina, com um cigarro no canto da boca, que lhe fazia manter o cenho franzido por causa da fumaça, e um copo de cerveja preta do lado. A filha, de seus 20 anos, queria ser cantora do que chamava de bandas alternativas. 

Quase não se falavam. A mãe, que a amava, por temperamento; a moça por um constante amuo, talvez, para usar suas próprias palavras, devido a “não conseguir espaço para realizar sua vocação”. 

Um dia, a moça apareceu na sala com uma pequena mochila e disse para a mãe, cujo rosto permaneceu inalterado: 

‒ Estou procurando mudar de ares, sacou? Um lugar em que eu possa refletir e me guardar. Vou pra Mauá. 

Um ano depois, voltou grávida. A mãe cuidou da filha e da neta sem uma palavra de censura. 

Quando a criança estava prestes a completar seu primeiro ano, a moça, um pouco alterada por maconha, voltou a dizer: 

‒ Tenho que me guardar num canto calmo. Planejar minha carreira. 

E a situação se repetiu. Voltou de Lumiar grávida. Novamente, sem reclamar, a mãe a ajudou e criou as duas crianças. 

Na terceira vez, quando a figura já estava saindo, com o mesmo papo de se guardar, a mãe botou o cigarro no cinzeiro, o que raramente fazia, chamou a moça, que já se encontrava na soleira da porta, deu um calmo gole na cerveja preta e perguntou: 

‒ Aonde você vai se guardar deste vez? 

‒ Sei lá. Tô pensando em Ibitipoca. 

A costureira olhou a filha bem nos olhos, por um longo tempo, e arrematou a costura: 

‒ Sua vó, que Deus a tenha, costumava dizer: “Tesoura e boceta a gente guarda fechadas.” 

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Do livro “Guimbas”, de Aldir Blanc.

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