domingo, 24 de dezembro de 2023

Desventuras natalinas

 Julia Bublitz 

Papai Noel cofiava a longa e espessa barba branca. Estava agoniado. Previa dificuldade para fechar as contas do Natal. E o sufoco se agravaria no futuro se nada fosse feito, dizia ele. Mais crianças correriam o risco de ficar sem presentes. Promessas e planos seriam comprometidos. Algumas despesas subiram naquele ano. Outras aumentariam no seguinte. Eventos climáticos dizimaram a produção de alfafa e o custo da alimentação das renas inflacionou. Com pandemia, peças de reposição para a manutenção do trenó rarearam. Ficaram mais caras. 

Os ajudantes duendes do chão da fábrica reclamavam do longo período de defasagem no ordenado. Apenas uma parte dos pequeninos seres, como os julgavam quais pedidos recebidos em cartas eram justos, mostrava-se capaz de extrair certas regalias. 

Para completar, a arrecadação dos recursos que chegavam ao Papai Noel para produzir e providenciar os presentes para as crianças foi reduzida de supetão. O governante anterior da Lapônia, um ano antes, pegou um naco do dinheiro para investir na própria popularidade. O de turno compensou só uma parte e em suaves prestações. 

Noel então tornou público o seu drama e a preocupação que nutria. Era preciso fazer um ajuste. Ter responsabilidade para garantir o Natal. Agora e nos próximos anos. As contas, na verdade, não estavam muito claras. Mas, do Polo Norte ao Polo Sul, acabou se tornando consenso que, então, alguma medida precisava ser tomada. 

Papai Noel sugeriu às famílias em situação mais confortável que aumentassem um pouco o valor que recolhiam para custear o Natal. Ou, uma segunda opção, parte deles teria de abrir mão do benefício que reduzia a taxa do frete embutido no custo da entrega dos presentes. Era um regalo concedido a alguns. Na verdade, nunca foi bem explicado e sequer se conhecia cálculo para mostrar se de fato trazia vantagens para a coletividade. 

Mas a resistência a ambos planos foi firme. De jeito nenhum, reagiram! Se isso fosse feito, seus dispêndios subiriam. Perderiam alguns negócios ou seus gastos a mais seriam repassados. No fim, seria ruim para todo mundo, argumentavam. E haveria o perigo de gente perder o trabalho. Ameaçavam até se mudar para uma região do globo sem tradição natalina. 

Essas famílias, então, propuseram alguma medida que aumentasse a produtividade nas tarefas da equipe de Noel. Quem sabe uma tecnologia para substituir parcela dos duendes? Chatbots para atender o público? Ou talvez diminuir o número de renas. Seis renas selecionadas por mérito, mais dedicadas, decerto conseguiriam puxar o trenó tão bem quanto oito. Essa duas, menos esforçadas e mais roliças, ainda poderiam render alguns pilas, vendidas para o açougue. A Associação dos Duendes Assalariados (Asduas) protestou e o Sindicato das Renas do Ártico (SinRenda) rechaçou a ideia. Já estavam no osso, alegavam as categorias. Os serviços prestados para a criançada, a razão do Natal, ficaria comprometidos.   

Noel, acabrunhado, parecia mais embretado que rato em guampa. Até porque prometera, de botas juntas, não fazer o que acabou propondo. O Bom Velhinho chegou até a contar uma história meio duvidosa de estar preocupado com o futuro. Será que, na verdade, o problema não estava para se revelar no presente próximo? Há quem não acredite em Papai Noel. Restou a segunda alternativa que colocou na mesa. Ao fim, era uma saída que já arranjava uns trocados logo depois da virada do calendário – bem antes do tal futuro.   

Moral da história 

Na essência, a situação envolvendo as agruras de Papai Noel com as contas do Natal até se assemelha com imbróglios recentes na Lapônia. 

A região promoveu uma mudança há muito esperada na coleta de impostos. A esmagadora maioria era favorável ao sistema mais justo, mas não eram poucos os que buscavam uma vantagezinha extra em relação aos demais. Ou então manter privilégios. Mesmo que o custo dessas bondades gerasse uma conta maior para os outros. È que era difícil para os integrantes do Conselho dos Representantes do Povo resistir à influencia de um grupo chamado de Amigos dos Lobos, cujos membros também eram conhecidos por lá como lobistas. 

Em outro caso rumoroso daqueles dias, muitos defensores de redução de despesa do Tesouro lapão pressionavam para não perder certo beneficio conquistado há algum tempo. Sabe como é: ajuste bom é o que aperta o cinto dos outros. 

As crianças das mais tenras idades, inocentes, não conseguiam entender todo aquele quiproquó. Muito menos quem tinha razão na guerra de versões. Mas as maiorzinhas começavam a assimilar uma lição contrária ao espírito natalino: se alguém terá um Natal mais magro, que não seja eu. 

(Do jornal Zero Hora, 24 de dezembro de 2023) 

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