quarta-feira, 24 de abril de 2024

Na saída do cinema

 Lygia Fagundes Telles

Eu fui ao cinema sozinha, como sempre vou, fui ao cinema perto da minha casa, mas a sessão atrasou e acabei vindo muito mais tarde do que eu pensava. E vim meia-noite pela rua da Consolação, que é a rua onde está o edifício onde eu moro, e começaram aquele... Olha o medo, aquele medo físico. Olha o medo: eu posso ser assaltada. Eu me lembro que eu tinha uma bolsinha, minhas bolsas são pequenas, e botei aqui [mostra como colocou a bolsa embaixo do braço]. De repente ouvi uma moto que vinha vindo e que foi travando na sua velocidade. Eu disse: eu estou sendo perseguida. Eu pensei: ai, mas que fim triste, eu aqui com meus pensamentos, que fim triste, levar uma estocada. Eu estava com pouco dinheiro, eu levei o dinheiro apenas para o cinema e estava com a bolsa, nem sei, levei a bolsa, um chiclete, mas estava sem dinheiro. Inclusive eu não podia dar dinheiro, porque estava sem dinheiro, tinha pouquíssimo, e a motocicleta parecia coisa de cinema, fita de terror: aquela motocicleta e eu apressando o passo. Percebi que a motocicleta apressou também. Eu disse: bom, agora é o fim. Quando atravessei a rua Oscar Freire para entrar no quarteirão do prédio onde eu moro, a motocicleta deu uma deslanchada, aí eu corri, corri alucinadamente. É um pedaço curto para chegar no prédio onde eu moro, meia-noite, deserto, ele [o condutor] acelerou junto comigo e quando eu estava subindo a escadaria, achando que ele iria vir por trás para me estocar com a faca, ele gritou: “Lygia Fagundes Telles, eu te amo!”, e foi embora. Eu vi um jovem descabelado, nem usava capacete, eu nunca mais o verei. E aí eu entrei em prantos, entrei em prantos no meu prédio e o porteiro, muito delicado o porteiro da noite: “Aconteceu alguma coisa?” ‒ “Não, não, não aconteceu nada. Eu estou tão feliz”.

Lygia Fagundes da Silva Telles (São Paulo, 19 de abril de 1918 – São Paulo, 3 de abril de 2022), também conhecida como “a dama da literatura brasileira” e “a maior escritora brasileira” enquanto viva, foi uma escritora brasileira, considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX e da história da literatura brasileira. 

Além de advogada, romancista e contista, e, Lygia teve grande representação no pós-modernismo, e suas obras retratavam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia.

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