domingo, 9 de maio de 2021

Camisa 1

 Texto de David Coimbra

Ilustração do Fraga 

Eram do Pão dos Pobres, e resolveram montar um time de futebol. Jogo tinham. Um era o Airton Pavilhão da bola de meia, outro o cerebral Larry do terreno baldio. Faltava, sim, arrumar o dinheiro do fardamento, das botinas, da bola de couro. Para time de vila isso é sempre difícil, e mais difícil ficava em 1963. 

Que jeito? Saíram a vender garrafa e jornal velho e a espremer limonada e a engraxar sapato. Deu. Encomendaram o uniforme. Uma beleza. Listradinho. Pena que ninguém ter máquina para bater a foto. O time até parecia que jogava melhor, corria mais, que se entendia mais assim, todo mundo igualzinho. O campinho era ali no Pão dos Pobres mesmo, de chão batido, de goleira de sarrafo. Campinho glorioso, de onde saíra Salvador, aquele centromédio do Inter dos anos 1950. 

Bom. Uma manhã de inverno, domingo, fazia um frio bárbaro. O tal de renguear cusco. O minuano uivava lá para os lados do rio. Entortava as paineiras. Fazia levantar as golas. E tinha jogo no campinho. Jogo brabeza, jogo duro. De campeonato. 

Meia hora antes, estava todo mundo lá − o adversário olhando feio, o pessoal do time saltitando de braços cruzados. Faltava só o goleiro. Onde andava? Ele era fome, não perdia nem jogo de três dentro três fora. Não ia pipocar justo naquela partidona. 

O tempo ia passando, já estava na hora do jogo, o juiz consultando o cebolão dele, cismado, e nada do goleiro. Cadê o desgranido? Reserva, reserva, não havia, mas um beque lá até atacava no gol, quando tinha que atacar. O negócio era botar o becão debaixo dos paus mesmo. Mas, e a camiseta? O goleiro morava pertinho, ali na Baronesa, era só buscar a camiseta, e pronto. Resolvido. Quem vai? Quem vai? 

Decidiram ir todos. Combinaram com o juiz, com os adversários, e saíram, o time inteiro. Foram correndinho até a Baronesa. Cada vez mais frio, cada vez mais frio. Chegaram lá azoando no paralelepípedo das ruazinhas, a trote, puf, puf, xingando cachorro, chutando lata, rindo, rindo, chamando o goleiro de sacana. Pararam diante da casa dele. Uma casinha. Casebre. De madeira. Até meio torta para um lado. 

Estava fechada. Bateram. 

Nada. 

Bateram de novo. Esperavam. Lá de dentro vieram uns passos fraquinhos e uma tosse comprida. A porta se abriu devagar. O escuro da casinha foi iluminado pela luz cinza do inverno de Porto Alegre. Sob o vão da porta surgiu uma mulher, uma senhora, toda encolhida, coitadinha, meio que gemendo de frio, o nariz fungando, os olhos vermelhos, a mão esquerda na maçaneta e a direita apertando o braço esquerdo. Fitou-os com seus olhos tristes de vira-lata pidão. Ciciou um bom-dia entre os dentes. Perguntou o que queriam. Ninguém respondeu. Olhavam para ela, mudos, de boca aberta. Ficaram assim alguns segundos, até que o centroavante atinou em gaguejar: 

− Desculpa. Foi engano. 

Foram embora cabisbaixos. Era a mãe do goleiro. Ela e sua sainha rota, seus chinelos de dedo. Ela e a camisa número 1 do time, camisa de bom tecido e mangas compridas. Quentinha, decerto. Bem quentinha. E preta, como toda camisa de goleiro tinha de ser, nos anos 1960. 

Naquele dia, o goleiro reserva do time do Pão dos Pobres jogou com uma camiseta vulgar, de manga curta e o 1 das costas riscado a carvão. Tudo bem, sem problemas. Sem problemas. 

***** 

(Do jornal Zero, crônica publicada em abril de 2000, e republicada em maio de 2021). 


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