quinta-feira, 7 de abril de 2022

O furacão

Artigo a ser anexado ao livro “Coisas do Arco do Velho”,

de Jack Manel.


Loide Colômbia

Aconteceu exatamente às 16 horas do dia 2 de fevereiro de 1958. 

Ao pisar na ponte de comando para assumir meu quarto das 16 às 18h, o navio Lóide Colômbia, do Lloyd Brasileiro*, sofreu súbito e violento balanço. As tempestades surgem gradativamente dando margem aos navegantes, baseados nas seguidas Forecast Wheather, irem procurando se afastar dos centros de baixa pressão, que são o “olho” dos furacões, tornados e ciclones. Este caso foi atípico. Pulamos de Mar de Almirante para a ferocidade do Netuno. 

Foi um corre-corre. Louças, panelas, rádios e televisores se espatifaram no chão; cadeiras foram arremessadas contra as anteparas. A marcha do navio foi reduzida à metade, o piloto automático foi passado para leme manual e aproamos 45º aos vagalhões. As violentas arfagens e caturragens arremessavam seguidas avalanches de um bordo para o outro, além de jatos “sólidos” no alto da casa de navegação, que tiravam quase que totalmente a visão exterior. Os limpadores de para-brisas centrífugos eram o único meio de visão externa. 

Em várias ocasiões, observamos a vibração da estrutura do navio. A procela prosseguiu noite a dentro e emendou o dia seguinte, sem esmorecimento. Aquele gigantesco berço de aço com 150 metros de comprimento embalava o sono dos 52 “nenéns”, que precisavam calçar o corpo com travesseiros. Andavam de pernas abertas para compensar o balanço. Alimentavam-se de sanduíches, pois a cozinha estava inoperante. Quem sofreu foi o pobre do padeiro que teve que se desdobrar. 

***** 

À tarde, nosso telegrafista captou pedido de socorro de um navio grego carregado de minério de ferro de Vitória-ES para Baltimore. Não tínhamos a mínima condição de socorrê-lo, mas sabíamos que o serviço de salvamento americano estava sempre atento e enfrentava qualquer tempestade para salvar vidas. Soubemos que foi a pique. Outros SOS foram captados. 

Enquanto o oceano jogava peteca com nosso barco, inúmeras estações de rádio de Porto Rico, Bahamas, Cuba, EUA, entravam estourando nossos ouvidos, transmitindo alegres programas musicais e humorísticos com muita alegria, contrastando com o nosso perrengue. Tudo bem, outro mundo. Quem vem para a chuva é para se molhar. A tripulação estava acostumada com essas fúrias marinhas nos Açores, Golfo da Biscaia, Golfo de Lyon, Mar do Norte, Bahamas, Golfo do México, mas esse furacão estava extrapolando. A nossa confiança era saber que os navios foram construídos prevendo esses castigos, contudo, sempre seria bom lembrar, que o mar não respeita navios. Procelas fazem parte da vida do marinheiro, principalmente a nós, brasileiros, em cujas veias correm o heroico sangue português dos grandes navegantes. 

Quase a metade dos experimentados marujos sofreu algum tipo de enjoo, porém, conseguiam sobrepujar o achaque e mantiveram-se firmes em seus postos, com exceção do enfermeiro Angelim. Logo o enfermeiro foi o que arriou de vez. Fui ao seu camarote visitá-lo e disse, brincando: 

- Ei, Angelim, para com isso! Estamos chegando a Nova York. Vamos dar umas voltas na montanha russa de Coney Island. 

Ele, prostrado, com os olhos semicerrados e com a boca aberta, balbuciou: 

- Jack, meu amigo... eu estou morrendo... avisa a minha mu... - e fez mensão de vomitar. Um companheiro fiel logo o auxiliou a sentar e debruçar no espaldar de uma cadeira invertida. Um balde, no chão, já não aparava mais nada. Só faltavam os gorgomilos. Vendo-o debruçado de costas para mim, tive a ideia de transferir a energia do meu corpo sadio para o dele combalido, através das vibrações que emanam das pontas dos dedos das mãos. Esse ensinamento obtive nos estudos na Ordem Rosa-cruz (AMORC). Fiz uma inspiração especial, coloquei determinado dedo de determinada mão em determinado ponto da espinha, e, em poucos segundos, Angelim se ergueu, saltou do beliche, e, em pé, balançou os braços dizendo: 

- Estou forte! Estou forte! Estou com fome! 

Pedi um copo d´água e mandei preparar uma comida leve, enquanto o levei à porta e mandei fazer várias inspirações. 

Fiquei assustado ao ver comprovada a eficiência da aplicação da energia que emana do nosso corpo. Levantou um defunto. 

***** 

A tempestade, pelo menos, serviu para alguma coisa: aproveitei os balanços laterais para dançar rock and roll. Caía para um lado dando os passinhos e voltinhas, espalmando uma viga da antepara para lá e para cá. Quando voltou a calmaria, usei a porta do camarote como parceira. Foi nos Seamen`s Club alemão que confirmei a eficiência do método. 

Por incrível que pareça, 70 horas após o primeiro balanço, o mar acalmou de repente, a voltamos à navegação normal. 

Após atracar no cais do Brooklin, em Nova York, e abarrotar o gigantesco armazém 12 com 120.000 sacas de café, fomos conduzidos a um estaleiro para inspeção dos estragos. Doze vaus, as costelas do navio, tiveram que ser re-soldados. Nesse ponto, o mar assemelha-se a uma sucuri. A cobra enrosca-se na presa e vai apertando e triturando seus ossos antes de engoli-la. O mar vai estalando a soldas da estrutura até quebrar de vez. Não poderia ser mais tenebroso o local dessa refrega: o Triângulo das Bermudas. 

Escapamos por pouco. 

***** 

Soube, depois, que um marinheiro entrou em um bordel em Recife caminhando com as pernas abertas, quando “uma profissional” o interpelou: 

- Bichinho, pruquê tu anda com essas pernas arcada parecendo uma gambá? 

- Tu não tá vendo que eu sou marujo? Tenho 20 anos de mar, e, devido aos balanços, fiquei viciado. 

E ela: 

- Vige! Não seja por isso. Eu tenho mais de 30 anos aqui na zona e nem por isso ando tremelicando e dizendo “Ai, meu amorzinho, ai, meu amorzinho...”. 

***** 

Até a próxima tempestade... 

J.C. Aranha 

* Lloyd Brasileiro (Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro) foi uma companhia estatal de navegação brasileira, fundada em 19 de fevereiro de 1890, no ano seguinte a Proclamação da República, durante o governo do marechal Deodoro da Fponseca. A empresa foi extinta em outubro de 1997, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de encerrar o crescente endividamento da empresa. 

História do Navio: Em 1947 foi lançado para a Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, Rio de Janeiro, sendo batizado como Loide-Colômbia. Em 2 de março de 1948 a sua construção foi concluída. Em 2 de dezembro de 1969 foi sucateado em Valença, Espanha.

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