quarta-feira, 6 de abril de 2022

Poemas de Fernando Bonassi*

 

Mentiras 

Eu minto. 

Minto sobre o passado, sobre o presente e o futuro. 

As mentiras saem de mim de forma tão natural, que se incorporam à minha vida com o peso de experiências. 

Filmes que não vi, lugares que não visitei, mulheres que não tive, presentes que não ganhei, sofrimentos que não passei. 

Minto assim... sem nenhum charme. 

Diria mesmo que, vez por outra, os acontecimentos são mais interessantes que as mentiras que coloco no lugar. 

Minto pra cacete. 

Minto inutilmente. 

Minto de me envergonhar. 

Agora mesmo eu nem sei se estou falando a verdade... 

Sorria! 

Deposite aqui. Aguarde. Ficha no caixa. Leve três. Aceitamos todos os tíquetes. Só com RG. Não pise na faixa. Pague dois. Por quilo. Facilite o troco. Até o vencimento. Débito automático. Fila única. Não tem chave. Não insista. Crédito obrigatório. Confira. Buzine. Conforme instruções. Relaxe. É lei. Digite a senha. Silêncio. À vista. Visite nossa cozinha. Senha não confere. Obrigado. Atenção. Em jejum. Fale com nossas operadoras. Não desligue. Por favor. Não perfure. Cuidado. Não rasure. Pare. Não amasse. Bloqueado. Deseja salvar? Sorria! Você está sendo filmado. 

Canção do exílio 

Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz “tuim” na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco. 

Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição. 

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*Fernando Bonassi (São Paulo, 16 de novembro de 1962) é um romancista, contista, dramaturgo, roteirista e cineasta brasileiro.

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