domingo, 26 de fevereiro de 2023

A carta de uma leitora

 

Tenho 55 anos, estou aposentada há dois anos e separada há dez. Tenho dois filhos com mais de 20 anos, que não colaboram em nada nas tarefas da casa. Os dois trabalham. O mais novo trabalha por conta própria, e vive reclamando que o dinheiro está curto. No entanto, vai bastante às baladas e trocou de carro por esses dias. Já pensei várias vezes em me mudar e deixá-los administrando o apartamento. Eles não gostam da ideia porque, inclusive, não se dão muito bem. Competem o tempo todo, não têm os mesmo amigos e já tiveram discussões feias. O mais velho é estressado, reclama de tudo. Não sei o que fazer da minha vida sem me sentir tão egoísta, culpada. Mas tenho vontade de sair mais e me entristecer menos. Sou meio parada para encontrar pessoas e diversões e tenho medo de sentir mais solidão se for morar sozinha. 

Marcela, Rio de Janeiro, RJ 

Nunca é tarde para mudar 

Alberto Goldin* 

Ainda era cedo quando acabou suas tarefas, casa limpa, comida pronta, roupa passada e organizadas nos armários. Finalmente poderia se dedicar a seu passatempo preferido: pensar, imaginar suas outras vidas, aquelas que não viveu. Do seu casamento sobraram, além dos filhos, móveis e utensílios, algumas cinzas e poucas fotografias nas quais ambos aparecem sorridentes e empolgados, antecipando um futuro que nunca chegou. 

− E agora? − perguntou-se Marcela pela milésima vez. 

Retomou seu filme no lugar onde parou no dia anterior. Usaria suas economias para a mudança, sem se preocupar em quebrar a sólida rotina que durante anos ocupou seus dias. A novidade foi o impulso de escrever para o jornal. Estava satisfeita de ter tido a coragem e a iniciativa de contar sua história, tirá-la do anonimato. Era sua vida e em rápida retrospectiva se viu quando era jovem, sensual e desejável, uma mulher que amou, chorou, construiu e habitou o palácio no qual reinou durante anos. 

Como acontece com a maioria dos palácios, a ação do tempo tinha lhe tirado brilho, altura, espaço e consistência, até ficar reduzido à sala, cozinha e três quartos que agora pretendia abandonar. Seus filhos, já adultos, se opõem, tentam segurá-la, não necessariamente por amor, mas com o propósito de manter o passado vivo. 

− A mãe deve morar com seus filhos − diz. 

É natural, só que as funções maternas, com o tempo, perdem a validade e atacam a feminilidade, e os filhos, presos ao mesmo passado, se instalam como adolescentes carentes. O resultado desse modus operandi é manter de pé as últimas colunas do antigo palácio, preservar a fase luminosa da família, quando juntos eram felizes. Essa armadilha prende Marcela, que se sente estar traindo o grupo se desmontar o cenário. Os filhos não querem sua independência e ela não quer a solidão. 

É estranho, porque sua vida já é solitária, os filhos não precisam dela e ela sabe que suas funções maternas são arcaicas. Deve a si mesma uma nova rodada de aventura, um novo contexto no qual possa rastrear a Marcela do passado, com direito a amigos, projetos e novidades. O paradoxo é que ao mesmo tempo em que retém o passado, rejeita os desejos e os valores da juventude. Existem duas possibilidades: uma é continuar como porteira da sua história, guardiã do museu; a outra é recuperar a mulher que foi na juventude. Não há idade para dançar, fazer turismo, recriar amizades... A única condição é se sentir livre, soltar filhos e lembranças e assumir uma proposta séria de mudança. A mudança não precisa ser imobiliária, importante é a mudança de atitude que, inexorável, acabará por levá-la a outro imóvel. Alguns precisam mudar de cenário para mudar o argumento, outros mudam o argumento para mudar de cenário. Não importa, Marcela, o essencial é a mudança. 

* Alberto Goldin é psicanalista. O nome da leitora foi alterado para garantir o anonimato da remetente. 

Texto da Revista O Globo, abril de 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário