quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

No rastro do poeta

 Nilson Souza

Olho para a esquerda e vejo parte da Avenida Getúlio Vargas, algumas palmeiras no canteiro central, logo atrás delas o antigo Parque de Exposições e, bem ao fundo, parte do morro da Embratel. Duas enormes torres de apartamentos com aproximadamente 20 andares me impedem de avistar o encontro do Presidente (av. Getúlio Vargas) com o romancista (av. José de Alencar) diante da paróquia, se me permitem uma charada geográfica para quem conhece o trânsito local. Olho para a frente e vejo outros prédios altos, mas ainda consigo vislumbrar entre eles as antenas de televisão do Morro Santa Tereza e até alguns gomos do Beira-Rio. Finalmente, olho para a direita e vejo um bom trecho de rio (ou lago, ou seja lá o que você preferir), mas também bastante entrecortado por  edifícios. 

Estou no 15º andar de um desses arranha-céus de Porto Alegre que Mario Quintana certamente não cogitaria levar para o céu. Subi aqui exatamente por causa do poeta. Fazia muito tempo que eu queria seguir a orientação deixada por José Octávio Bertaso nas páginas do seu livro A Globo da Rua da Praia, em que narra uma curiosidade histórica da literatura gaúcha. No outono de 1975, quando foi levar-lhe os originais dos Apontamentos de História Sobrenaturais para publicação, Quintana caminhou até a janela do sexto andar do prédio da Gráfica da Globo no bairro Menino Deus, observou a vista e exclamou: 

− Que belo mapa da cidade! 

Em seguida, segundo o relato de Bertaso, retornou à mesa de reuniões e começou a rabiscar no seu bloco de notas. Em poucos minutos, produziu mais um poema e pediu que fosse incluído no livro. 

Assim surgiu O Mapa, um verdadeiro hino poético de Porto Alegre. Foi olhando para as esquinas esquisitas daquele bairro antigo que o poeta imaginou a anatomia de um corpo e sentiu a dor infinita da inspiração para produzir uma obra-prima. Eu tinha que ver o que ele viu. Por isso subi no prédio vizinho ao condomínio construído sobre a antiga gráfica e consegui a permissão de um empresário de modas − curiosamente, também chamado Quintana e também do Alegrete − para ir até a janela de seu escritório e lançar o meu curioso olhar sobre o cenário inspirador. 

Claro que não vi exatamente o que Quintana viu, pois a cidade mudou bastante desde a década de 70. E mais ainda depois que o próprio poeta, em maio de 1994, transformou-se em poeira ou folha levada no vento da madrugada. Além disso, é provável que me tenha faltado no olhar − talvez também no cérebro e na alma − aquele dom especial para perceber algum suave mistério amoroso em meio ao concreto. Mas a poesia continua lá. Apesar dos edifícios, o Menino Deus ainda é um corpo azul-dourado, como cantou Caetano. 

(Do jornal Zero Hora, 2 de fevereiro de 2023) 

O Mapa 

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
 

(E nem que fosse o meu corpo!) 

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
 

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
 

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
 

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
 

E talvez de meu repouso...

Nenhum comentário:

Postar um comentário