domingo, 19 de fevereiro de 2023

Uma realidade do tempo atual

 Um minutinho de uma vida inteira 

Carpinejar

Antes mesmo de limitar o horário do celular das crianças, vejo como imprescindível restringir o tempo de uso do aparelho pelos pais. 

O celular virou babá dos adultos, cardápio de pessoas e lugares. Você se julga onipresente na virtualidade e comete uma ausência irreparável diante dos seus entes mais próximos na vida real. 

Os filhos podem fiscalizar o vício, já que os pais extrapolam o senso do aceitável. 

Não são as crianças que ficam o tempo todo no celular, elas apenas seguem os exemplos paterno e materno. 

Recebem o celular de presente para não incomodar seus pais entretidos com os seus celulares. É uma distração inventada pelos responsáveis sempre ocupados. 

Os pais tomam café com o celular, almoçam com ele, jantam com ele, interrompem passeios para atender a chamadas, numa disponibilidade integral aos estímulos externos. 

E jamais relatam o que de tão importante estão fazendo, porque nem eles sabem. 

Você abre as redes sociais sem um objetivo definido, para descobrir o que você procura enquanto desliza os dedos. De tela a tela, acaba em lugar nenhum, a ponto de não entender como parou no perfil daquela pessoa. 

Vê a postagem de um amigo, entra na página da namorada dele, daí passa para a página do amigo da namorada,  daí segue para a página da mãe do amigo da namorada, daí migra para a página da amiga da mãe do amigo da namorada. 

Trata-se de uma quadrilha digital jamais imaginada por Carlos Drummond de Andrade. 

É mentira que exista o hábito de navegar na internet para estar bem informado. Depois de horas zapeando, você não se lembra de coisa alguma. A memória se desintegra automaticamente. Como lapsos de uma bebedeira feita de imagens e links. 

A pressa é um embuste. Se você responder a alguém no minuto em que recebeu a mensagem ou após duas horas, não fará diferença. O destinatário vai ler quando quiser. Experimenta-se uma noção falsa de importância pessoal e profissional pela simultaneidade dos contatos. 

Não há mais rotina off-line: acariciar as costas do outro, olhar nos olhos, abraçar na chegada ou despedida de casa, fazer algum gracejo aproveitando o gancho de uma conversa, dar uma caminhada com os ouvidos livres e o rosto voltado para o céu. 

A exigência de música no fone para qualquer percurso roubou a nossa escuta. A inclinação em torno da luz azulada brilhante na mão roubou a nossa visão e a nossa postura. 

Surgirá uma mensagem mais urgente do que a família. Surgirá uma ligação mais inadiável do que o seu lar. Porque sua prioridade é o celular, mais ninguém. Como se todos os seus afetos morassem dentro dele, não fora dele. 

Só um minutinho hoje pode durar uma vida inteira. 

Qualquer um pode acessar o tempo que dedica ao telefone por dia, no símbolo da ampulheta de Ajustes (iOS) ou no símbolo do coração de Configurações (Android). 

Não estranhe que a estatística resulte em 18 horas diárias. 

Representa uma intoxicação. O único momento em que não vem empregando o aparelho é na hora do sono: as seis solitárias horas de sono. 

Se o filho quiser falar com o pai e com a mãe, terá que ser apenas quando eles estiverem dormindo, e ainda precisará torcer para que sejam sonâmbulos. 

(Do jornal Zero Hora, fevereiro de 2023) 

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