segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Glória, minha rainha:

Pedro Bial homenageia Gloria Maria com crônica no palco do Fantástico. 

O jornalista Pedro Bial, que apresentou o Fantástico ao lado de Glória Maria, fez um 'colar de joias vocabulares' com versos para dizer adeus à amiga.

Pintura de Gloria Maria por Eduardo Kobra 

Glória, minha rainha, olha eu aqui de novo, pra variar esperando você como sempre, agora só falta o boa noite... Só que dessa vez, sua peste, você não está atrasada, dessa vez você foi embora antes da hora, logo você que não largava uma boa festa.  

Eu vou seguir, como se você ainda estivesse a meu lado. Deveria estar, deve estar. Agora que você foi morar nas nuvens com outras deusas, (e elas que se cuidem...). Vou celebrar sua condição terrena, de musa, avatar de geral. Avatar é alguém que encarna o outro, abriga o desejo do outro. Gloria avatarizava a sede de liberdade do povo. 

E pra uma musa, tenho que me dirigir em versos. Mas quais? Hoje somos nós que não temos palavras, Glória, nós que não queremos ter palavras de adeus. 

Então, eu fiz assim: fiz um pequeno colar de joias vocabulares pra você usar rente ao pescoço nessa sua eternidade cósmica. Roubei uns versos daqui e dali, palavras que falam da vaidade das palavras, quer dizer, de quando as palavras não prestam mais para dizer nada, vaidosas, vãs, palavras em vão. 

Joias como a de nosso mestre Armando Nogueira, que, com Alice Maria, inventou você, viu em você o que ninguém tinha visto ainda. Saravá, Alice, na terra; saravá, Armando, no céu. Armando que abriu assim sua crônica, lembra? Quando o Brasil ganhou a Copa de 70: Ele abriu a crônica assim: “E as palavras, eu que vivo delas, onde estão?” 

E de Confissões preciosas como a do poeta que você soube encontrar no meio da rua, em um dia de Natal de 40 anos atrás. 

“Eu tenho esperança, mas acho o mundo muito errado, muito cheio de injustiça e de miséria. Então, o máximo que a gente pode desejar é que as coisas melhorem, né? Que haja uma tendência, pelo menos, para melhora. Acho que depende um pouco de nós. Nós começamos a desejar essa melhora, né?”, disse o poeta Carlos Drummond de Andrade em entrevista à Glória Maria. 

Carlos Drummond de Andrade, que reconheceu que...

“Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã.”
 

Ou palavras de renúncia, como do poeta português Eugênio de Andrade, num poema que tem por título a palavra de quem não tem mais palavras: 

“Adeus,
Já gastamos as palavras pela rua, meu amor,
E o que nos ficou não chega
Para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo, menos o silêncio.”
 

Silêncio! No palco do mundo, ecoam as palavras da atriz em cena, Denise Fraga na peça “Eu... De você”: 

“Escolhi silenciar. E o silêncio foi muito mais eloquente do que falar, porque foi um espaço não vazio, livre das palavras. As palavras que tanto nos enganam, nos isolam, nos iludem, as palavras que nos diluem.” 

E palavras de prece, Glória, que nos reconstituem, como as do padre José Tolentino Mendonça, naquele livro que dei pra você com a intenção de ajudar você na barra pesada da doença, da falta, da sede... A sede que nos ensina paciência: 

O livro é “Elogio da sede”, como nos versos de uma “A oração da sede”: 

“Ensina-me, Senhor, a rezar a minha sede
A pedir-te não que a arranques de mim ou a resolvas
(...)
Ensina-me a beber da própria sede de Ti
Como quem se alimenta mesmo às escuras
Da frescura da nascente
(...)
Que a sede (...) me obrigue a preferir a estrada à estalagem
E o aberto da confiança ao programado do cálculo
Que esta sede se torne o mapa e a viagem
A palavra acesa e o gesto que prepara
A mesa onde partilhamos o dom
E quando der de beber aos teus filhos seja
Não porque tenha a posse da água
Mas porque partilho com eles o que é a sede”.
 

Oremos por: saúde, paz, ânimo para correr atrás, seguir correndo atrás da Glória.

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