segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Um clássico de Tom Jobim

 

Análise da música Águas de Março 

De Antônio Carlos Jobim 

Durante a construção de sua casa em Poço Fundo (região serrana do Rio de janeiro), Tom Jobim* quis alterar o projeto, para que o pé direito do piso térreo pudesse ser mais alto. Isso gerou um problema, pois o arquiteto e projetista teve de refazer os cálculos e o projeto. Com isso a obra atrasou e a casa não ficou pronta no mês de fevereiro, antes do início das chuvas de março. Jobim acompanhava, no local, quase todos os dias, o passo a passo da construção, muitas vezes interrompida pelas chuvas de março. Foi nesse cenário do som das águas, dos problemas, da espera, da angústia repetitiva, que Tom, segundo ele próprio, foi anotando em um “papel de pão” (um papel comum que embrulhava pães comprados nas padarias antes dos atuais saquinhos), rabiscando, reescrevendo, procurando sons, ritmo, harmonia e palavras. Nesse manuscrito, é possível perceber os versos escritos, com adendos, substituições, palavras ou frases inteiras desprezadas. 

Segundo o autor, essa é uma obra singela e simples, mas é muito complexa pela variação harmônica para poucas notas, pelo ritmo contínuo da chuva, pela letra que descreve o movimento das águas morro abaixo. A solidão da espera de que a chuva diminua para continuar a obra. A enxurrada que desce morro abaixo, levando pau e pedra. O pouco sol que brilha no vidro molhado, a noite que chega sem a chuva ir embora. A conversa na beira do rio, a pescaria, a espera, em meio imagens das árvores, do toco, do nó da madeira. O canto do pássaro matita-perê, do vento, do tamanho da ribanceira. As vigas da casa, a imagem do vão, a espera da festa da cumeeira (quando se termina o telhado, se festeja com um barril de chope). Tudo pelo projeto da casa, da promessa da vida no coração. 

Os amigos de um tradicional bar carioca foram os primeiros privilegiados a ouvir a música, cantada por Tom Jobim ao violão. 

Em 1974, uma nova versão foi gravada no disco “Elis e Tom”. O dueto entre a “pimentinha”, apelido criado pelo poeta Vinícius de Moraes, e o maestro eternizou a canção. De forma metafórica, “Águas de Março” fala das chuvas do fim do verão como um símbolo de renovação da vida. 

Uma pesquisa feita por um jornal de São Paulo, em 2001, com jornalistas, músicos e artistas de todo o Brasil, elegeu Águas de Março, composta em 1972, como a melhor canção brasileira de todos os tempos. 

*Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, nasceu em 25 de janeiro de 1927, Rio de Janeiro e faleceu em Nova Iorque no dia 8 de dezembro de 1994. Mais conhecido pelo seu nome artístico Tom Jobim, foi um compositor, maestro, pianista, cantor, arranjador e violonista brasileiro. 

Do Blog ArtesArtistas 

Águas de Março 

É pau, é pedra, é o fim do caminho.
É um resto de toco, é um pouco sozinho.
É um caco de vidro, é a vida, é o Sol.
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol.
É peroba do campo, é o nó da madeira,
Caingá, candeia, é o Matita Pereira**.
É madeira de vento, tombo da ribanceira.
É o mistério profundo, é o queira ou não queira.

É o vento ventando, é o fim da ladeira.
É a viga, é o vão, festa da cumeeira.
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira.
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira,
Passarinho na mão, pedra de atiradeira.
É uma ave no céu, é uma ave no chão.
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão.

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto, o desgosto, é um pouco sozinho.
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto.
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto.
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando.
É a luz da manhã, é o tijolo chegando.
É a lenha, é o dia, é o fim da picada.
É a garrafa de cana, estilhaço na estrada.

É o projeto da casa, é o corpo na cama.
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama.
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã.
É um resto de mato, na luz da manhã.
São as águas de março fechando o verão.
É a promessa de vida no teu coração.
 

É uma cobra, é um pau, é João, é José.
É um espinho na mão, é um corte no pé.
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

É pau, é pedra, é o fim do caminho.
É um resto de toco, é um pouco sozinho.
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã.
É um belo horizonte, é uma febre terçã.
São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração.
 

**Tom Jobim canta, na gravação com Elis Regina, Matita Pereira, mas o nome do pássaro é Matita Perê.

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