segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O poeta Carlos Drummond de Andrade previu a

 Morte das casas de Ouro Preto 

Carlos Drummond de Andrade

Ouro Preto - MG. Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Matriz do Pilar) e casario 

Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não veem. Também morrem.
 

Assim plantadas no outeiro,
menos rudes que orgulhosas
na sua pobreza branca,
azul e rosa e zarcão,
ai, pareciam eternas!
Não eram. E cai a chuva
sobre rótula e portão.
 

Vai-se a rótula crivando
como a renda consumida
de um vestido funerário.
E ruindo se vai a porta.
Só a chuva monorrítmica
sobre a noite, sobre a história
goteja. Morrem as casas.
 

Morrem, severas. É tempo
de fatigar-se a matéria
por muito servir ao homem,
e de o barro dissolver-se.
Nem parecia, na serra,
que as coisas sempre cambiam
de si, em si. Hoje, vão-se.
 

O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
Que se incorporem as árvores
hoje vigas! Volte o pó
a ser pó pelas estradas!
 

A chuva desce, às canadas.
Como chove, como pinga
no país das remembranças!
Como bate, como fere,
como traspassa a medula,
como punge, como lanha
o fino dardo da chuva
 

mineira, sobre as colinas!
Minhas casas fustigadas,
minhas paredes zurzidas,
minhas esteiras de forro,
meus cachorros de beiral,
meus paços de telha-vã
estão úmidos e humildes.
 

Lá vão, enxurrada abaixo,
as velhas casas honradas
em que se amou e pariu,
em que se guardou moeda
e no frio se bebeu.
Vão no vento, na caliça,
no morcego, vão na geada,
 

enquanto se espalham outras
em polvorentas partículas,
sem as vermos fenecer.
Ai, como morrem as casas!
Como se deixam morrer!
E descascadas e secas,
ei-las sumindo-se no ar.
 

Sobre a cidade concentro
o olhar experimentado,
esse agudo olhar afiado
de quem é douto no assunto.
(Quantos perdi me ensinaram.)
Vejo a coisa pegajosa,
vai circunvoando na calma.
   

Não basta ver morte de homem
para conhecê-la bem.
Mil outras brotam em nós,
à nossa roda, no chão.
A morte baixou dos ermos,
gavião molhado. Seu bico
vai lavrando o paredão

e dissolvendo a cidade.
Sobre a ponte, sobre a pedra,
sobre a cambraia de Nize,
uma colcha de neblina
(já não é a chuva forte)
me conta por que mistério
o amor se banha na morte.

[Do livro Claro enigma] 

Versos 'próféticos' de Drummond são resgatados após tragédia em Ouro Preto: 'Ai, como morrem as casas!' 

Escrito em 1951, 'Morte das casas de Ouro Preto' está sendo lembrado nas redes depois de desabamento de casarão histórico. “Morte das casas de Ouro Preto” já alertava para os riscos das chuvas naquela cidade. “Lá vão, enxurrada abaixo, as velhas casas honradas”, escreveu Drummond. 

O imóvel que foi abaixo na manhã desta quinta-feira (13) era conhecido como Solar Baeta Neves, datava do final do século XIX, e era tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Segundo o prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo, se tratava do primeiro casarão em estilo neocolonial da cidade. Foi erguido por Alfredo Baeta, senador e primeiro prefeito de Ouro Preto. O sabido risco de deslizamento de parte do Morro da Forca, no entanto, impedia obras de restauração no local, que estava interditado pelo Iphan desde 2012. 

(Do jornal O Globo)

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