quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Cartas guardadas por amigos

revelam intimidade de Elis Regina, morta há 40 anos

Quem trocou correspondências com a cantora não esquece. Guarda até hoje, como relíquia, os velhos papéis com a letra (e algumas revelações) de Elis. 

Karine Dalla Vale

Detalhe do papel timbrado e da letra de Elis na correspondência enviada em 1969

 para sua ex-professora Aida Ferrás-André Ávila / Agência RBS 

Há lamentos e confissões de Elis Regina depositados em gavetas, em meio a papéis de escritório e até mesmo emoldurados na parede 40 anos após sua morte, em 19 de janeiro de 1982. São cartas que a cantora trocou com amigos e personalidades do Rio Grande do Sul e que seguem guardadas, como relíquias pessoais de cada um. 

GZH teve acesso a algumas dessas correspondências. À professora aposentada Aida Ferrás, que lecionou para Elis em Porto Alegre, a cantora desabafa sobre frustrações no amor; ao jornalista Pedro Sirotsky*, reclama de pessoas “interessadas” que ficavam ao seu redor; ao crítico musical Juarez Fonseca*, que acompanhou toda a sua trajetória, fala sobre a importância de ter as pessoas queridas por perto; a Vitor Ramil*, então um jovem que iniciava a carreira na música, prova, em um breve telegrama, que não se colocava em um pedestal, inalcançável. 

Mostrar alguns trechos do que Elis escreveu, além de contar as histórias que viveu com seus destinatários, é uma oportunidade de entrar na intimidade da cantora, deleitar-se com as reflexões que fazia sobre a vida, as críticas à sociedade e ao país, apiedar-se com o sofrimento que sentia. A cada vez que são relidas, essas cartas reativam memórias em quem ainda as guarda, jogam um pouco mais de luz sobre a cantora, que permanece absoluta na história da música brasileira. 

“Tenho uma incrível vontade de acertar”

Para: Aida Ferrás − Ano: 1969 

No fim dos anos 1960, o nome de Elis já tinha extrapolado as fronteiras do Brasil e chegado a Paris, onde Aida Ferrás se aprimorava em francês. Em uma roda de amigos, a porto-alegrense ouviu de um carioca: 

– Élis, tua conterrânea, está brilhando – disse ele, sem saber a pronúncia correta do nome da cantora que ganhava projeção. 

Aida lembrou da menina a quem tinha dado aula de português e literatura na Escola Normal Dom Diogo de Souza, em Porto Alegre. Era uma guria inteligente que, se não lhe falha a memória, conseguia as melhores notas. 

– Só tirava 10. Gramática correta, escrevia bem – conta a professora, hoje com 88 anos de idade. 

A relação em sala de aula foi breve. Aida logo viajou para a Europa. Em seguida, Elis, com apenas 19 anos, foi fazer sucesso no Rio de Janeiro. Do outro lado do Atlântico, a professora tomou conhecimento do tamanho da fama alcançada pela ex-aluna. Quando retornou à cidade natal, Aida passou a acompanhar a carreira de Elis. Foi pela imprensa que soube do relacionamento com o compositor Ronaldo Bôscoli, 17 anos mais velho, com quem havia se casado em 1967. Decidiu escrever para a cantora, para lhe dar orientações. Não recorda exatamente do conteúdo da carta, mas lembra do que a motivou: 

– Ela era ingênua, muito gaúcha, inocente. E era muito direta. 

Na resposta, datada de 15 de agosto de 1969, Elis se abre com a antiga professora. Confessa, em uma carta escrita em papel timbrado, o quanto era infeliz ao lado de seu primeiro marido. Cita o fato de, mesmo mais nova, ganhar muito mais do que ele, “um padrão irreal de salário”. No entanto, não considerava justo arcar com as responsabilidades do parceiro. “Só porque ganho mais, devo mais?”, questiona. 

Também revela o tratamento hostil que Bôscoli lhe reservava. “(Segundo ele) Meus amigos são idiotas, minha mãe, estúpida, eu não sei de nada, nem sou mulher. Por que, então, não viver em paz?”, escreve. “Não me queixo do trabalho. Só me queixo da falta de paz”. 

Com 24 anos, Elis mostra a mulher cheia de desejos que havia se tornado, ansiosa por um relacionamento mais igualitário, além de afetuoso. “Durmo com um homem que há três meses me trata com a maior indiferença. Primeiro, pensei ser meu problema. Fiquei maluca. Dei uma olhada ao redor. Não me achei nada desprezível. Muito ao contrário. Vários me olhavam, queriam, se insinuavam”. 

Em uma época em que as mulheres pouco falavam sobre sexo e muito menos sobre o próprio prazer, Elis admite: “O que eu não posso fazer é passar a considerar o sexo um ato subalterno. Não acho. Não só não acho como preciso dele. Já falei. Expliquei. Implorei”. 

Pede à antiga mestra que, se algo não tivesse ficado claro em suas explicações, se ainda era necessário que fizesse alguns apontamentos sobre sua vida, que escrevesse novamente. “Respondo tudo. Faço qualquer coisa. Tenho uma incrível vontade de acertar”, suplica. 

Aida, ao ler as queixas da ex-aluna, ficou consternada. Pôde encontrá-la alguns meses depois, quando viajou ao Rio, naquele mesmo ano, para visitar uma irmã. Ainda aproveitou para assistir a um show de Elis no Teatro da Praia, onde estava em cartaz cantando O Barquinho, Casa Forte e Insensatez. Passaram uma noite juntas, jantaram e Aida foi dormir na casa de Elis, que voltou a reclamar do casamento: 

– A gente não está legal, Aida. Não conseguimos conversar, porque ele sempre tem razão. 

Foi a última vez que ficaram perto uma da outra. Aida só viu Elis novamente a distância, em 1977, quando a cantora veio a Porto Alegre para estrear Transversal do Tempo no Teatro Leopoldina. Já havia rompido com Bôscoli, de quem se separou em 1972, e estava casada com o músico e compositor César Camargo Mariano. Também nunca mais se escreveram. 

– Acho que ela não tinha mais tempo. Acho que ficou esgotada – diz a professora aposentada. 

Cinco anos depois, Aida acompanhou a repercussão da morte da cantora pela imprensa. Considerou a abordagem distorcida, com muita ênfase na overdose que tirou sua vida e pouco destaque à magnitude de seu trabalho. É numa cômoda de seu apartamento, no oitavo andar de um prédio em frente ao Parque Farroupilha, que guarda a carta que a antiga aluna lhe enviou pedindo conselhos e se afligindo por causa do amor. 

(Do Blog GZH) 

* Há, ainda, na matéria, cartas para Pedro Sirotsky, Juarez Fonseca e Vitor Ramil

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