sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O delicado papel do carona

 Texto de Fabrício Carpinejar*

O carona deveria tirar carteira de acompanhante, assim como o motorista precisa passar por testes práticos e teóricos para alcançar a sua habilitação. 

O copiloto é capaz de estragar a melhor das viagens, obscurecer a Rota Romântica ou bloquear a imensidão esverdeada do pampa. 

É um risco transportar quem é ansioso, autoritário ou preocupado demais, ainda mais quando ele vai ao seu lado, com plenos poderes de mexer em tudo o que é botão. 

Ser carona exige uma leveza extraordinária, uma maturidade da gratidão, um estado de graça. 

Requer generosidade para lembrar o momento de dividir a água e senso de presença para apontar as belezas da paisagem, chamar atenção para os tons do crepúsculo e capturar um arco-íris ao longe. 

Depois de cem quilômetros rodados, ser agradável é um dom de poucos e raros. Em passeios curtos, qualquer um disfarça a chatice. 

Prioritariamente, o carona não pode gritar. Por nada desse mundo. Mesmo que passe um cavalo correndo na pista. Gritar é cegar o condutor, ele achará que não está enxergando algo à sua frente. A tendência é se desesperar, colocar o volante para a direção oposta e provocar um acidente. 

O carona não pode concorrer com o motorista, querer tomar o seu lugar, forjar um golpe de Estado. Não dá para aguentar o palpiteiro de plantão, que contraria até o GPS e reclama que sempre foi escolhido o percurso errado. 

O carona não pode reclamar do ar-condicionado forte e inventar de abrir as janelas para o vento chicotear os cabelos. 

O carona não pode entrar no carro e dormir durante toda a viagem. Não está num hotel. Isso é abuso e excesso de mordomia – que contrate um chofer e se acomode no banco de trás. Sua função é conversar, evitar a monotonia perigosa da linha reta.

O carona não pode mexer na playlist, cometer o crime de interromper uma canção na metade, na hora em que começa o karaokê. 

O carona não pode provocar náusea por consumir salgadinhos com cheiro de chulé ao seu lado. Esses salgadinhos só não enjoam quem come. 

O carona não pode decidir parar sem-número de vezes para uma selfie inesquecível. 

O carona não pode se movimentar que nem um mico, pulando de galho em galho, subindo nos assentos para localizar um objeto que esqueceu no bagageiro, dentro da mala. 

O carona não pode confundir o deslocamento com terapia, descrevendo a sofrência do último relacionamento e pedindo a opinião para uma situação irreversível. Não é porque está sozinho com alguém que há a mesma privacidade de um divã. 

Ser carona é mais complexo do que ser motorista. Tem que ser muito motorista para ser um bom carona. 

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*Em Zero Hora, janeiro de 2022 

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