sábado, 30 de julho de 2022

“O Getúlio matou o saci”

 

Pasquale Cipro Neto 

A primeira coisa que faço quando entro num avião da TAM* é procurar o delicioso “Almanaque Brasil de Cultura Popular”, editado por Elifas Andreato e distribuído aos passageiros dessa empresa aérea.

Na semana passada, numa viagem de Brasília a São Paulo, fui golpeado por “Sinceramente, Brasil!”, emocionante texto do próprio Elifas. Diferentemente do que o título talvez sugira a todos os que fomos humilhados pelo torpe ufanismo dos tristes tempos da ditadura, que deixou fantasmas dos quais muitos de nós ainda não nos livramos, não se trata de mero libelo pseudopatriótico.

Elifas não é gente dessa estampa, como diria mestre Paulo Vanzolini. Trata-se do relato maduro e sensível da “primeira notícia do Brasil”, que lhe chegou “a um roçado no extremo norte do Paraná”, onde o menino Elifas vivia com a família, cultivando café.

Ao voltar de mais um dia de trabalho, Elifas e seus companheiros mirins não encontraram a avó Maria, “portuguesa risonha e religiosa”, que sempre os aguardava na varanda para abençoá-los pelo dia trabalhado.

A hora do jantar já tinha passado, quando, rezando, vestida de luto e com um véu preto que lhe cobria o rosto, a avó chegou à cozinha e deu a notícia: “O Getúlio matou-se a si”. “Exultei", escreve Elifas, que entendera “O Getúlio matou o saci”. “Tinha pavor do saci e saber que ele estava morto me alegrava”, explica Elifas.

A forma “matou-se a si”, empregada pela avó portuguesa, encerra um dos interessantes casos de pleonasmo de nosso idioma. Quando se fala em “pleonasmo”, muita gente logo pensa em “subir para cima”, “descer para baixo” ou “entrar para dentro”, casos em que a redundância de termos não confere à frase elegância, clareza ou vigor. Mas o pleonasmo não é necessariamente vicioso. No caso de “matou-se a si”, temos a forma átona “se” (reflexiva) revigorada por sua equivalente tônica, “a si”.

Isso é comum em vários registros linguísticos, orais e escritos. “Pobre te vejo a ti”, escreveu o baiano Gregório de Matos. Na Bahia, por sinal, esse caso é comum também na oralidade, que ainda guarda traços barrocos.

Em “Ela É Carioca”, de Tom e Vinicius, temos outro exemplo: “Ela é meu amor, só me vê a mim, a mim que vivi para encontrar na luz do seu olhar a paz que sonhei...”. A cena se repete: a forma átona “me” é reforçada pela equivalente tônica (“a mim”).

Uma das mais conhecidas frases atribuídas a Sócrates (o filósofo, é claro) em português é simplesmente “Conhece-te a ti mesmo”. Agora, as formas átonas e tônicas correspondentes são “te” e “a ti”.

Essa estrutura é tão comum que gerou até o bem-humorado título de uma obra de auto-ajuda de Agamenon Mendes Pedreira, pseudônimo do pessoal do Casseta & Planeta. O livro se chama “Ajuda-te a Mim Mesmo”. Eis um belo exemplo de como valer-se do conhecimento de uma estrutura linguística para, subvertendo-a, atingir determinados fins.

Um exemplo recente desse tipo de subversão é a genial “Fora de Si”, de Arnaldo Antunes. O texto merece análise detalhada, o que prometo fazer brevemente. É isso. 

(Folha de S.Paulo, 12 de abril de 2001) 

* O dia 5 de maio de 2016 ficará marcado na história da aviação brasileira. Após 39 anos, a TAM deixa de existir a partir de hoje, assim como a chilena LAN. Juntas agora elas são Latam Airlines, ou apenas Latam.

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