domingo, 3 de julho de 2022

Viver e poder reviver

 Uma vida de borboletas azuis*

Com irmãos, não menos extrovertidos que eu, minha infância é um texto de bagunças e artes que atiçavam os nervos de meu pai. Esse me vem à lembrança como a mais rica das memórias que ainda não se apagaram completamente nesses 82 anos, de caminhada árdua pela vida. 

De minha mãe não guardo muita coisa, pois ela se foi quando eu era um toquinho de gente, tinha apenas cinco anos. Como lembrança dela, recordo uma teimosia que guardo com vergonha, e é um bocado engraçada. Foi em um fim de tarde.

Como sempre, ela nos mandou meus irmãos e eu, irmos tomar banho no riacho que corria logo abaixo de casa. No forno da casa havia um bolo assando, e, como eu estava com uma gula imensa por devorá-lo, propus a minha mãe que se ela me desse um pedaço do bolo eu tomava o tal do banho. Ela ignorou meu pedido e me deu um pedaço de sabão para que eu me banhasse de uma vez. O pedaço era tão parecido com uma fatia de bolo, que eu, naquela idade, me confundi com tal. Hum! Jurei que era o doce de verdade. 

Lembro com lágrimas nos olhos das brincadeiras, do tempo de vestidinho de chita que eram recheados de imaginação. A ilusão de ver uma boneca em uma espiga de milho ou em um embrulho de meias, uma bola para jogar caçador, era a única maneira de termos um brinquedo por falta de dinheiro. Porém, as brincadeiras não deixavam de ser calorosas e divertidas em meio a tantos improvisos. 

O decorrer dos dias era sempre a mesma rotina, acordar, ir para o curral, ordenhar as vacas, depois ir para o campo cortar milho. Nos fins de semana fazíamos faxina em casa. O que me divertia era ir à igreja e cantar ladainhas em italiano. Minha rotina só mudou quando comecei a frequentar a escola aos nove anos. 

A minha infância na escola, ao contrário de muitas, não me causava repulsa. Em uma escola de freiras, as professoras não eram feras de unhas afiadas como em tantas histórias, nem os castigos severos. Tudo corria perfeitamente. Até hoje lembro de lições em que escrevíamos na “pedra” para depois apagar e guardar apenas entre as orelhas: temos um polegar, um indicador, anelar, mindinho, pai de todos; temos quatro caninos... 

Aos treze anos, comecei um namoro com meu vizinho, ele, na época, tinha quatorze anos e frequentávamos a mesma escola. As festas que eu então ia seguidamente com meu pai, era o ponto de encontro entre eu e Ezelino. Nós nos comunicávamos trocando apenas olhares. Eu roubava o seu sono; ele, o meu, nos amávamos deveras. O casamento veio seis anos depois. Tudo arranjado por meus parentes, que fizeram um bom trabalho, pois saiu uma linda festa com churrasco e deliciosos doces. Naquela nossa primeira noite, o sono roubado por tantos anos foi compensado, quando dormimos abraçadinhos até de manhãzinha, com borboletas azuis rondando nossos sonhos. 

A linda história foi substituída por um pesadelo anos mais tarde. As mariposas azuis desapareceram, quando meu querido faleceu de câncer aos 45 anos. Ainda não entendo como vivi trinta e oito anos sem Ezelino ao meu lado. 

Hoje, quando sento na cadeira de balanço, tenho a impressão de que as borboletas voltam e rondam meu coração trazendo a lembrança de Ezelino, onde, nos seus olhos, vejo refletida toda a minha infância e sinto na boca o gosto do sabão, trocado pelo bolo. Se eu pudesse arrumar minha trouxinha e me mudar para a infância novamente, não pensaria duas vezes, levava a meus amigos para sentir o gostinho de tudo o que eu vivi e poder reviver mais algum tempo com meu amado. 

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P.S. Na internet e em trabalhos acadêmicos não há nenhuma referência à autora dessa crônica.

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