domingo, 31 de julho de 2022

Histórias de bichará

 Paulo Mendes

Imagem da internet

Quando o inverno mostra sua cara nesses campos e fundões de invernada, quando o minuano assobia na pauta comprida dos alambrados, compondo cantigas de brancas geadas, quando a aragem gelada se esgueira por entre as frinchas dos ranchos e casebres, neste momento, nós, os daqui do Sul, procuramos abrigo. Este, pode ser uma japona, uma campeira, um pala, um poncho ou o velho bichará feito a mão pelas velhas tecelãs do pago. Uma tarde fria agosto, o velho Otaviano bebericava um aperitivo de cachaça com bitter no bolicho, fumando um baio comprido de fumo da Quarta Colônia, quando me atrevi a perguntar: “Seu Otaviano, de todas as coisas que o senhor teve na vida, do que mais o senhor tem saudade?” Surpreso com a pergunta, o velho olhou por uns minutos para a estrada deserta e triste, soltou uma baforada longa e respondeu: “Já tive saudades de amores perdidos, dos meus 18 anos, dos filhos que deixei pelo caminho. Hoje, sinto frio até nos ossos e só tenho saudade do meu velho bichará.” 

Lembro que a menina Antonia, filha mais nova do changueiro Pedro Leco, do Guassupi, teve uma doença rara e não durou muitos dias no hospital. Houve uma comoção na vizinhança, o peão era benquisto por todos, trabalhador, habilidoso na cutelaria, fazia umas facas lindaças a partir de qualquer material que lhe davam, como molas, adagas antigas, pontas de espadas e ferros diversos. Fomos ao enterro, um dos mais tristonhos que já presenciei nesta já minha longa vida. Nunca esqueço do Leco agarrado à filhinha, desesperado, tapado em pranto, quando tirou o bichará do corpo e enrolou o corpo da criança. “Como meu anjinho vai suportar essas friagens solita numa cova na escuridão? Como vou viver sem o brilho de seus olhos me alumiando, se era ela a coisa mais valiosa que tinha?”, perguntava aos gritos. Ah, meus amigos e amigas, são tantas as tristezas que presenciei nesta vida. O Leco realmente não conseguiu mais viver como antes, não tinha forças para trabalhar, passava os dias bebendo e um dia desapareceu da Vila Rica, nunca mais se soube dele e da sua pequena família. 

Quantos gaúchos apeavam no bolicho naquelas invernias, atiravam o pala para trás e diziam: “Que seria de mim sem este galpão de lã”. Eu ria e sonhava com um daqueles abrigos para me esquentar nas noites friorentas. Até que um dia aconteceu um fato que marcou para sempre minha vida com um típico pala campeiro, desses de pura lã de ovelha crioula. Foi assim, seu Lara, o gaiteiro cego, morava conosco e eu costumava levar-lhe à noite, no galpãozinho, um prato de comida um copo de água. Numa delas, agradecido, disse-me: “Quando me for, entregue a gaita para minha neta Amélia. E este bichará é para ti.” 

Hoje, olho para o velho bichará que nunca se entrega, parece até um farroupilha de lança na mão, impávido no alto da coxilha, sem medo da morte, defendendo a terra amada em que nasceu. Ah, bichará de antanho, símbolo de proteção, amizade e tradição. Faço num mate, visto este pala e olho lá para o longe, depois do rio. Penso na minha gente e rezo para que nunca passe necessidades. Que a alma dessa gente sulina possa sempre se aquecer debaixo das tranças quentes de um bichará 

(Da coluna Camperadas, no Correio do Povo, 31 julho de 2022) 

Glossário 

* Bichará: lã grossa que serve para fazer poncho ou cobertor. 

* Pala: poncho leve de brim ou seda com as pontas franjadas. 

* Minuano: vento frio e seco que sopra do sudoeste no inverno, em geral por três dias: minuano-limpo. 

* Frincha: fenda, fisga, greta.

* Bolicho: o mesmo que bodega. Pequeno armazém de secos e molhados. 

* Baio comprido: cigarro de palha, o nome baio provém da semelhança de cor da palha com o pelo do cavalo. 

* Quarta Colônia foi o quarto assentamento de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Após Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Garibaldi, a região central do estado recebeu 70 famílias de imigrantes vindos da Itália a partir de 1877 para povoar a localidade. Foi o único destino fora da serra gaúcha. 

* Changueiro: pessoa que obtém seu sustento mediante a realização de trabalhos esporádicos. 

* Guassupi: está localizada na Microrregião de Santa Maria no estado do Rio Grande do Sul (RS) 

* Alumiando: o mesmo que: iluminando, reluzindo, acendendo, resplandecendo, brilhando, ilustrando. 

* Coxilha é uma colina localizada em regiões de campos, podendo ter pequena ou grande elevação, em geral coberta de pastagem. 

P.S. “Campereadas”: Crônicas, contos e causos do Sul de Paulo Mendes.


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